A rotina cai como uma graça no colo dos homens e se adaptar é uma escolha que se faz forçosamente.Dona tinha agora seu próprio uniforme escolar. Nada de maquiagem. Uma menina de dez anos não precisa mais do que um baton... rosa bem clarinho. Preguiça é um hábito que embaraça os cabelos, causa mau hálito e descansa o corpo. Todos tributos de Dona.
Depois da escola almoçava, fazia o dever esforçadamente, lavava a louça, limpava a casa, estendia a roupa... uhfa! Disciplina é terapia e passatempo até para os preguiçosos.
Nada de banho ainda. Para onde Dona ia a tardinha banho não era, de longe, necessário; o lixão. Foi no lixão que dona conseguiu a cama de sua mãe, um sofá, um armário de cozinha e uma caixinha de música que tocava quando dava na telha. Carregava tudo como podia. As vezes desmontava tudo, carregava os miúdos em várias viagens e depois montava tudo de novo em casa.
Tirou o uniforme da escola e vestiu um de sua dúzia de vestidos vermelhos costurados por sua tia Madalena. "Vermelho é cor do amor", ela dizia. Não foi de se espantar que em seu próprio velório, tia Madalena, a defunta, vestia tal cor.
Mãe de Dona ajudava Tião Pé Duro no Centro Comunitário. Faxina, serviços de banco, cafezinho... Aos domingos ia pro Boiadeiro, a rua da feira da Rocinha. Ajudava a diminuir o desperdício dos feirantes garantindo, assim, a bóia da semana.
As meninas da escola não se enturmavam com Dona e nem a deixavam se enturmar. Ninguém queria ser amiga de uma menina de vestido vermelho que vivia no lixão. Dona vestia um vestido diferente a cada dia, mas, por ser todos a mesma cor, parecia ser um único vestido todos os dias. O cabelo embaraçado, sujo e caído na cara não colaborava para o padrão de estética estabelecido pelas "novinhas do batidão". A canela esguia também não.
Embora a Rocinha fosse bastante colorida, tanto em suas casas quanto em sua gente, aquela semana tinha sido um tanto desbotada. Um homem esfaqueado no "beco dos pancados", uma mulher esquartejada com seus membros espalhados pelos quatro cantos da cidade, quatorze mortos numa operação policial (entre eles dois soldados e um menino de oito anos de idade), um pedreiro desaparecido em outra operação... Naquela manhã, os ares trouxeram um tom mais acinzentado à comunidade.
E foi nesse tom acinzentado que Dona desceu da Rua Nova pro Valão, sob uma invisível orquestra fúnebre intensificada por seu vestido vermelho. Tudo cinza e uma menina de vestido vermelho revirando o lixão. Não havia cor alguma naquele dia. Nem música de alegrias ou comemorações. Não se era possível enchergar nada mais além daquele vestido, aquela menina e aquela cor. Como se todos, ao olharem Dona, compartilhassem algo em comum; o anseio por dias mais amenos. Anseio por dias melhores. Afinal, vermelho é a cor do amor.
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Unicórnios, Vestidos Vermelhos e um Mar Bem Perto
Fantasy#Wattys2016 ¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤ Capa por @RodolfoSalles, autor de "Absolutos". ¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤¤ 'Unicórnios, Vestidos Vermelhos e um Mar bem Perto' Quando uma luz te conduz para um novo mundo... Dias atuais. Zona Sul do Rio de Janeiro, Rocinha. Don...