O rosto ardia em brasa causando um incômodo destrutivo porque ecoava como um alarme, a fazendo reviver segundo após segundo o que havia passado poucos minutos atrás. Mas, de qualquer maneira, ainda se não sentisse a pele queimando com o calor do contato bruto recente, tinha certeza de que não poderia esquecer. Nem se vivesse por um milhão de anos.Jamais estaria apta a perdoá-lo. Um sopro de amor próprio havia lhe acometido trazendo de supetão o desejo lancinante de ter de volta a vida a qual havia abdicado há alguns meses. De repente, os pontos fracos de Vincent - aqueles que a mente adorava enumerar em seus momentos de rancor – soavam como o paraíso em sua nova e forçada concepção. Entretanto, ao mesmo tempo em que mundo lhe era apresentado por um outro ângulo, tinha noção de que poderia estar se precipitando. Os pensamentos, um atrás do outro tomavam conta de si em uma velocidade avassaladora, sem lhe dar tempo de processá-los com sanidade.
Adentrou a casa em silêncio e automaticamente sentiu-se abraçada pela atmosfera tranquila e familiar. Inspirou fundo o aroma conhecido que exalava das paredes e dos móveis que compunham cada metro quadrado, tudo lhe remetia à um verdadeiro lar. Não se lembrava da última vez que havia se sentido daquela maneira.
Acolhida.
Levou as mãos ao rosto vermelho e úmido em uma tentativa vã de secá-lo. O bem-estar proporcionado por estar ali libertava em si os mais obscuros sentimentos. Sua consciência lhe censurava lhe dizendo o quanto havia sido injusta e não merecia o homem o qual carregava o sobrenome.
Estava equivocada, era evidente. Havia encontrado justificativa para sua deslealdade na frieza de seu marido – esta que agora lhe parecia também um erro de julgamento de sua parte.
Vincent não era um príncipe de conto de fadas. Nunca fingiu ser, pelo contrário, era extremamente transparente em tudo o que fazia e pensava. Amelia não podia culpá-lo, não era de sua responsabilidade corresponder a qualquer uma de suas expectativas. O problema era que seu plano parecia tão bem bolado que não acreditou nem por um instante que pudesse falhar.
A primeira etapa era conseguir uma chance com ele. Não demorou muito para que descobrisse sobre seus gostos peculiares e se apresentasse como iniciante em uma das festas a qual o homem sempre frequentava. Bastou alguns dias estudando sobre o assunto para que criasse coragem de abordá-lo. White sempre foi muito aberto à diálogos interessantes e Hale tinha um pequeno dom: a eloqüência. Via o brilho nos olhos verdes que se entusiasmavam com as palavras tão bem-ditas que saíam dos lábios tom escarlate.
Quase nem parecia uma principiante.
Mas a verdade sempre esteve clara para a moça. Não queria viver naquele mundo por muito tempo, o interesse às práticas nada convencionais de Vincent era apenas uma isca. Só assim ele lhe daria espaço suficiente para que se conhecessem, bem como gostaria.
Depois, assim que o fizesse se apaixonar, ele mudaria.
Todavia, era evidente – enxergava com clareza agora – que seu plano estava fadado ao fracasso. Havia desconsiderado a mais importante das variáveis: o livre arbítrio. E infelizmente não havia nada que pudesse mudá-lo.
Então, baseando-se nos conceitos de relacionamento e sentimentos que conhecia, junto com o passar do tempo, viu-se em uma vida insatisfatória. Não cabia em seus pensamentos que Vincent pudesse lhe amar, dando continuidade às práticas que exercia. Em sua mente, ambos não encaixavam-se de maneira alguma em um relacionamento feliz e saudável.
E sem mais a esperança de tê-lo em um cavalo branco lhe acordando do sono eterno, tudo se esvaiu em uma rotina torta e desajustada. Seus corpos quando juntos eram como instrumentos desafinados, fazendo ressoar uma música aguda e ensurdecedora. O sexo era uma sessão de tortura física e os carinhos, uma espécie de agradecimento do dono para com seu cão.
Fechou as pálpebras fortemente e mais duas lágrimas escorreram convergindo para seus lábios. Nunca havia enxergado a própria relação de forma racional, sempre esteve sob influência de certos sentimentos que ofuscavam a realidade.
Vincent não era perfeito, mas também não era um monstro.
Ele era humano.
Cometia erros e os tentava consertar logo em seguida e sempre os fazia com maestria. E de uma coisa, Amelia não podia negar, o marido nunca deixou de demonstrar extremo desejo por si, assim como interessava-se por sua satisfação, em saber se estava feliz. Agora notava o quanto havia sido miserável. Jamais, em outra ocasião, pensara em como deveria ser para White estar com alguém que havia fingido afinidades só para aproximar-se. Como era egoísta.
Deu alguns passos em direção a mesa redonda, a dos desenhos. Apoiou as suas mãos em sua superfície amadeirada e permitiu que os olhos marejados contemplassem toda sua extensão, centimetro por centímetro, observando os desenhos que se sobrepunham aos outros, revelando que eram os mais recentes. Algo estava diferente e a mudança era gritante às iris negras.
Mais nenhum deles tinha seu rosto.
Quase no mesmo instante em que suas pálpebras abriram-se em surpresa, ouviu a voz grave em suas costas:
- Amelia? Está tudo bem?
A jovem virou o rosto para encará-lo e um súbito alívio lhe acometeu. De prontidão correu para abraçá-lo e o fez o mais forte que pôde. Não queria que lhe escapasse, não queria que fosse embora para longe de si. Então novamente os olhos encheram-se d'água e um choro pueril ressoou por toda a sala.
O homem engoliu em seco e correspondeu o abraço, permanecendo calado por algum tempo dando espaço à sua esposa. Suas feições estavam duras e o pensamento distante, em algo que havia recebido pelo correio ainda pela manhã.
- Vincent. – Chamou entre soluços, o rosto colado ao peito de White.
- Olhe para mim. – Ordenou. Hale hesitou enquanto, com o olhar aflito pela sala, buscava alguma explicação. Mas quando ouviu o suspiro pesaroso do marido, percebendo que não tinha escolha, obedeceu.
Automaticamente o semblante do homem se desarranjou e suas íris escureceram. O polegar foi de encontro ao hematoma arroxeado ao redor do olho direito. A jovem cerrou as pálpebras temendo a reação do marido, mais lágrimas desprenderam-se de seus orbes.
Não sabia o que dizer. Não queria perdê-lo.
- Quem fez isso? – A indagação soou ameaçadora.
Lindey desviou o olhar.
- Um ladrão me abordou... Eu... – Voltou a chorar compulsivamente.
Vincent focou o olhar na bolsa da mulher em uma das poltronas.
- Ele não roubou nada? – Jogou.
- N-não, eu reagi. E foi...
- Foi como conseguiu isso. – Advinhou.
- Desculpe... Me desculpe. – Levou as mãos ao rosto amaldiçoando-se por não conseguir se esconder. O homem franziu o cenho mais uma vez, intrigado com a reação da esposa.
- Pelo que, Amelia? Tem sorte de o ladrão não estar armado.
Então a jovem encarou-o profundamente, admirando os traços delicados de White.
- Acho que tem razão. Se ele tivesse uma arma, eu não sei o que teria acontecido. – E voltou a abraçá-lo em um gesto desesperado.
Vincent aconselhou Hale a ir tomar um banho quente e depois dormir um pouco. Sentia que precisava de algum tempo sozinho para refletir no que havia acontecido. A história recém-contada por sua esposa mexia consigo das mais variadas formas, principalmente porque desconfiava que estava mentindo.
E se estivesse... Talvez aquele bilhete que recebera fosse verídico.
Retirou-o do bolso, demorando as íris claras sobre cada letra recortada e colada cuidadosamente no papel. Variadas fontes e tamanhos, formando uma só frase.
"Amelia tem um caso com Jack Walker"
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No Escuro || (Romance Gay)
RomanceDe repente, por mais que estivesse em frente a um espelho, fitando-se por minutos em silêncio, não se reconhecia. Nos traços faciais refletidos, não havia sequer um ínfimo resquício do temido líder dos Leviathans e, sim, uma trilha de ruína e devast...