Infância Difícil

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— Menina, vá para o seu quarto

Bradou James à Emma. Era uma noite fria de Setembro em Nova York, em uma cidadezinha pequena qualquer em um lugar qualquer. Moravam em uma casa pequena, sem muito conforto ou luxo. As paredes do quarto descascavam revelando o reboco enquanto a cal das paredes da sala manchava as roupas dos moradores toda vez que esbarravam nelas — isso irritava James, e era mais um motivo para descontar na sua família.

— Meu nome é Mary Margaret, e não Branca! — gritou a mãe de Emma para James

Ela odiava esse apelido mais que tudo na mundo. Depois que sua mãe morrera, não fazia mais sentido usá-lo, perdera seu real signo. Mary era estranhamente alva, tinha cabelos negros como a noite e olhos igualmente negros — agora com cabelos mais curtos, pois um acesso de raiva a fez corta-los à apenas dois dedos de comprimento.
Ela e James começaram a brigar depois do nascimento da menina; há algo de estranho com você dizia James toda vez que olhava para a menina no berço — você é um maldito fardo Emma como se a culpasse por todos os desentendimentos entre ele e Mary o que hoje, o levou a machucar o rosto da menina quando ela apareceu à porta e o impediu de agredir Mary Margaret.
Emma aprendeu desde cedo, que nem tudo são flores e que finais felizes não faziam parte do livro da sua vida.

Subindo as escadas de degraus barulhentos, Emma guia-se através da meia luz do corredor tateando as paredes ao acaso a passos lentos e surdos em seus Mary Jane, cantarolando uma melodia. A menina atravessa a porta que separa seu quarto úmido do corredor fechando a mesma atrás de si e olhando ao redor; seus cabelos dourados estavam soltos em volumosos cachos desgrenhados que mais pareciam fios de ouro.
Ela vai até o espelho e examina o rosto — não era de todo tão mal assim, pensou. O pequeno corte fora feito na maça esquerda do rosto da garota, que sentia arder a cada vez que encostava um pano úmido para conter o ínfimo sangramento.
Emma sequer derramou uma lágrima, nenhuma, nem ao menos lacrimejou.

Ela só tem oito anos.

Após por um band-aid de ursinho no ferimento, ela voltou à cama e abaixou-se puxando para si um enorme retângulo de papelão. Emma desenhara nele teclas de piano, e simulava os sons do instrumento com a boca.
Sua paixão pelo instrumento foi instantânea quando a menina vira um concerto quando passava em frente a uma loja de televisores. O som que este fazia, entranhou-se nela de tal modo que vivia a batucar os dedos na mesa de sua sala de aula involuntariamente.
Os pais de Emma não tinha condições  de dar a ela um teclado. Não tinham nem onde caírem mortos - muito menos vivos — quem dirá comprar algo tão caro.

Pressionando seus dedos no papelão, fingindo que tocava de verdade, Emma abafava os gritos de Mary Margaret e os xingamentos de James no andar de baixo cantando uma canção para o seu único e então precioso amigo, O Urso.
Após fazer uma pausa dramática e um meneio de cabeça igualmente dramático, Emma aplaudiu sua própria performance e sorriu para Urso.

— Você gostou? — perguntou a menina à pelúcia faltando um olho

— Mas é claro que gostei Emma, foi... Legal — disse ela simulando uma voz grave para o brinquedo

Rindo de si própria, Emma deitou no chão e ficou olhando para o teto lotado de círculos negros causados pela infiltração que vieram pela intensa chuva de Setembro. Logo, seu sorriso morreu nos finos lábios e se transformaram em lágrimas de tristeza; em sua pequena experiência de vida, já havia sofrido igual ou até mais que um adulto. E assim permaneceu, no chão e às lágrimas até adormecer.

Mais tarde naquela noite, depois se agrediram verbalmente, Mary Margaret subiu ao quarto de Emma quando James deixara a casa.
Ela encontrou a menina no chão ao lado de seu "teclado" e sorriu tristemente para a cena.
Afastou os lençóis para o pé da cama e pegou a menina no colo cuidadosamente, depositando-a com delicadeza sobre o colchão gasto e logo a cobriu.

— Ah Emma, minha princesa... Eu não queria que você tivesse que passar por isso — disse Mary com um soluço surdo

Ela arrumou os cabelos da menina para traz da orelha e com o polegar, sentia os traços juvenis dela.

— Você é só uma menina, não merece passar por isso só por uma má escolha que eu fiz — seus olhos já estavam vermelhos pelo choro reprimido e a garganta ardia — Encontrarei uma maneira, eu prometo

A mulher pôs-se a beijar a testa da menina e com um suspiro triste levantou-se da cama dela e saiu, fechando a porta rangente atrás de si.
Mary Margaret permaneceu a noite toda em claro. Sentada no sofá da sala, ela meditara sobre sua situação e o que faria para melhora-la. Ela era professora, mas por conta de um acidente que custou a vida de sua mãe, Mary desistiu de tudo. James era gerente de um banco, mas por conta do álcool o rapaz começou a faltar no trabalho, e quando ia aparecia bêbado e não exercia bem o ofício. Ele foi mandando embora por justa causa depois de agredir seu superior e teve as referências sujas, assim não conseguindo emprego em lugar algum.
Branca chorava copiosamente encolhida no sofá — ela e James eram muito jovens e quando jovens se casam, coisas ruins acontecem. Mas ela amava Emma e queria o melhor para a menina. A única coisa que brotava em sua cabeça era o abrigo no centro da cidade; ela não queria, mas não tinha escolha....

                             ****

— Mamãe, para onde estamos indo? — indagou a menina enquanto Mary a puxava pelo braço

— Você já vai ver, querida

A mulher secou os olhos marejados com a mão livre, enquanto guiava Emma pela calçada.
A menina segurava a mão da mãe acariciando-a com seu dedão enquanto cantarolava e se equilibrava no meio-fio. Virando em uma esquina arborizada, Mary avistou ao longe uma casa enorme. É logo ali, falou consigo.
Dirigindo-se para o final na rua, Mary põe Emma no colo e a carrega aninhada ao seu pescoço. A mulher derrama lágrimas surdas durante todo o percurso - ela não queria que sua filha a visse chorando.
Ao chegar na soleira da porta, Mary pôs a garota no chão e bateu à porta: uma mulher loura e alta de uma beleza estonteante a recebeu com um sorriso reconfortante.

— Você deve ser Mary Margaret, certo? — indagou a mulher

— Sim sou eu... E esta é Emma — disse colocando as mãos no ombro da garota

— Mamãe quem é ela? O que você está fazendo?! — disse Emma um pouco alterada

Mary abaixou-se na frente da menina e a abraçou forte em lágrimas. Depois ficou de pé e guiou a mãozinha dela para a moça na porta.

— Mamãe? Onde você vai? Por favor não me deixa! — a menina implorava em meio aos soluços

— Eu não queria filha mas é preciso — a mulher secou os olhos — Quero te dar sua melhor chance, mesmo que isso signifique não estar mais com você, meu amor.

— Não! Por favor! — gritou a menina em desespero quando sua mãe ergueu a mão em um sinal de adeus fraco e virou as costas

Emma chorava e se debatia como mora o colo da dona do abrigo. Ela fazia o melhor que podia para conter a fúria da menina e a aninhava contra seu peito. No final, depois de tanto lutar contra o aperto da mulher, Emma cedeu e permaneceu imóvel deitada sobre o ombro da loura.

Mary Margaret após deixar Emma, sentou-se no meio-fio e chorou como nunca chorara antes. A menina era tudo o que ela tinha de mais precioso e agora, não tinha mais nada. Ela não podia ver sua filha sofrer pelas más escolhas que fizera no passado, Emma era inocente, não era justo.
Depois de controlar o choro, a mulher puxou o celular do bolso e fez uma ligação.

— Alô? — uma voz grave com um sotaque arrastado do Sul

— Papai, é Mary. Estou voltando para casa...

A PianistaOnde histórias criam vida. Descubra agora