8 - Vida na estrada

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Sábado, 17 de outubro de 2015

A vida na estrada não é como eu imaginava. Toda essa experiência está sendo completamente diferente do que eu esperava. É intensa. É solitária, mas ao mesmo tempo é libertadora. Por mais que se tente planejar, alguma coisa sempre vai surpreender. E nem sempre isso é bom. Na maioria das vezes não é. Tudo isso que contam nos livros ou retratam nos filmes é a maior mentira. Eles fazem até os piores momentos parecerem lindos e perfeitos. Só que na realidade é exaustivo demais. É uma grande porcaria e eu não sei onde eu estava com a cabeça quando pensei que isso seria uma boa ideia. Mas talvez esse só seja um dia ruim, como poderia ser ruim em qualquer outro lugar, então quando isso acontece eu tento relevar. É assim que tem que ser. E é assim que será.

Faz um mês que eu deixei o hotel velho e sujo e desde então não tem um dia sequer que eu não pense nele. E em um hóspede específico. Milhares de vezes eu pensei em largar tudo, toda essa ideia de continuar viajando para me encontrar, e voltar ao hotel e recomeçar. Mas assim que pensava percebia o tamanho da estupidez dessa ideia. Todo esse processo ao qual eu estou me sujeitando é para um auto-conhecimento, por mais piegas e clichê que isso soe. Eu sempre vivi uma contradição louca, uma luta constante na minha mente, porque ao mesmo tempo em que eu queria me fechar e me defender das pessoas e do mundo lá fora, eu era um coração mole e acabava me entregando e cedendo à toda e qualquer situação. E com esse negócio de seguir o coração eu sempre me ferrava no final, então estou firme na decisão de seguir em frente. Não era o amor da minha vida. Não estava nada predestinado. Meu estômago até embrulhava, só de pensar nessa possibilidade. Chega de acreditar nessas coisas.

O problema em fazer as coisas no impulso é o que acontece depois que você começa. E comigo não está sendo diferente. Por não ter me planejado muito bem, não separei muito dinheiro e isso tem sido uma pedra no meu sapato desde que saí de casa. Para conseguir seguindo em frente, na maioria das vezes eu tenho que parar em algum lugar e oferecer algum serviço em troca de dinheiro. O que não é bom por dois motivos: nunca consigo um valor suficiente para me manter por um tempo maior e as pessoas sempre me olham com desconfiança quando me ofereço. Mas às vezes o Universo parece conspirar e eu tenho um pouco de sorte. Às vezes acontece exatamente o contrário. E para agravar a minha situação, minha visão já está começando a ficar ruim.

Logo que abandonei Heitor continuei pedindo carona e acabei parando em um lugar tão longe de tudo que por várias vezes eu tive que checar no mapa para ver onde eu estava. Só tinha mais alguns trocados, o suficiente para uma noite em um hostel que parecia abandonado. Não que eu me importasse com luxo e conforto, mas as únicas estrelas que existiam naquele lugar eram as que dava para ver no céu pelo buraco do teto no quarto. Assim que tranquei minha mochila no armário sentei na cama para planejar o que faria a partir dali para conseguir dinheiro. Ou alguma coisa que chegasse perto disso. Foi só quando minha barriga roncou alto que percebi que já estava há horas sem comer e que se eu não fizesse nada a respeito cairia duro ali mesmo.

Sentado à mesa enquanto devorava um pedaço de pão caseiro eu observava o pouco movimento na cozinha apertada e antiga. Além de mim, uma senhora de cabelos grisalhos enrolados em um coque mal feito estava debruçada em uma panela cozinhando alguma coisa que pelo cheiro parecia molho de tomate e um homem não tão velho com cara de afetado estavam lá, mas pareciam nem notar minha presença. Algo que eu já estava acostumado. Mas como eu precisava de informações, eu teria que fazer contato com algum deles. Minha primeira opção seria a mulher cozinhando, porque estranhamente me sinto mais confortável conversando com pessoas como ela, de aparência mais inofensiva. Estava me preparando para levantar quando o homem estranho se sentou e acabou com meus planos. Primeiro, porque estava bloqueando minha passagem até a senhora. Segundo, pela lei do menor esforço. A conversa seria com ele mesmo.

— Com licença - tentei começar, sem sucesso. Ele nem me notou.

Pigarreei e fiz outra tentativa:

— Com licença, o senhor sabe on...

— O senhor não. Você! Não sou velho - ele me interrompeu, mas sem tirar os olhos do prato de comida dele.

— Me desculpa. Eu, er... - nesse momento o nervosismo fez com que meu plano fosse por água abaixo e minha ansiedade não me deixou nem lembrar qual era o meu nome.

O homem finalmente olhou para mim, esperando que eu terminasse de falar, e eu poderia jurar que um dos olhos dele era de vidro. Assustador.

— O senh... você. Você sabe onde eu poderia arrumar algum emprego temporário?

— Um bico?

— Isso! Um bico - eu nem sabia que essa expressão ainda era usada.

— Tem um restaurante aí na frente. Vai lá. Diz que eu que mandei.

— E qual o seu nome? - se bem que se eu dissesse "cara estranho com a cara esquisita" todo mundo ia saber de quem se tratava, até quem não mora na cidade.

— Diógenes.

— Obrigado.

Menos de uma hora depois eu já estava trabalhando onde Diógenes me indicou e fiquei por lá algumas semanas. Geralmente eu lavava as louças ou ajudava a fritar hambúrgeres. Quando o dono estava estressado ele me fazia limpar o banheiro e quando tinha muito movimento eu ajudava a servir as mesas. Eu até era obrigado a usar um avental. Só escapei de usar saia porque não tenho o costume de depilar as pernas. Essa era a hora em que eu me sentia em filmes de Hollywood onde alguém provavelmente iria colocar o pé enquanto eu passava para eu cair. E isso aconteceu. Ou quase. Só que o motivo do tropeção foi culpa dos meus olhos que resolveram me trair. Começou com aquela sensação familiar de quando a vista desfoca e a gente fica com preguiça de focar ela de volta. E ali estava eu, por mais que tentava fazer com que minha visão desembaçasse, ela permanecia do mesmo jeito. Foi quando bati em uma das banquetas que ficam no balcão e lentamente pude sentir tudo ao meu redor se desequilibrar e por último vieram o impacto de tudo batendo no chão e o barulho de tudo o que podia se quebrando. Porque a vida é muito mais malvada do que um garoto mimado que pensa que as outras pessoas só existem para servi-lo e eu experimentei isso da pior forma possível.

Depois do incidente fui gentilmente convocado a me retirar do recinto e dar adeus à minha fonte de dinheiro. Fiquei chateado, mas nunca fui desses que consegue permanecer muito tempo em um emprego só, então não dei muita importância. Mas foi aí que percebi que já passava da hora de voltar a pedir carona e de continuar me deslocando.

Antes de Escurecer (Pausado)Onde histórias criam vida. Descubra agora