3 - Acontecimentos Estranhos

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- Obrigada por me teres deixado passar aqui a noite.

- Não é que me tenhas dado propriamente outra opção. - Ambas nos rimos.

- Encontramo-nos no centro daqui a meia hora, assim retribuo o favor, porque eu sei o quão horríveis podem ser os primeiros dias numa escola nova principalmente no secundário.

- Ok, combinado. – Não pensara propriamente em ter de frequentar aulas.

Pensei e repensei o que me pareceu uma eternidade se haveria de me alimentar antes de me meter no meio de um rebanho de humanos histéricos enjaulados num recinto escolar, não por achar as suas veias extremamente apetitosas mas para controlar a minha impaciência. Arrancar pescoços à dentada ou arremessar pesos mortos contra paredes não seriam uma boa primeira impressão. Optei por não o fazer, não disponha de tempo suficiente para o fazer longe das fronteiras da cidade e para já não seria oportuno atacar qualquer um.

O caminho até à escola secundária pareceu interminável, não graças ao silêncio mas sim ao terrível ritmo impresso pela Afrodite, talvez pela quantidade de álcool que ainda continha no sistema ou pelo desprovimento de vida. Mais uns metros e teria pegado nela ao colo.

O edifício lembrava-me um antigo convento, revestido a pedra naturalmente disposta sem grande intervenção ao longo dos séculos, os antigos quartos no andar superior serviam de gabinetes institucionais, salas de encontro de trabalhadores e arrumos e no piso inferior as salas utilizadas pelos monges e freiras no passado serviam como salas de aula aos poucos estudantes que a cidade oferecia. O refeitório mantinha-se na passada cozinha conservando uma chaminé de proporções extraordinariamente grandes para um sítio com poucas referências históricas, pelo menos conhecidas, tal como a cantina que ainda utilizava as grandes mesas corridas de madeira grossa e pouco trabalhada carcomida pelo tempo. Os recintos exteriores outrora quinta ou espaço de cultivo agrícola tinham sido cedidos ao terreno do hospital.

- Diferente do que esperarias deduzo?

- Sim, começo a achar que não vim parar aqui por acaso. - Murmurei mais para mim do que em resposta.

Quando menos de um terço da população é estudantil seria difícil não conhecer toda a gente nem que fosse de uma forma superficial. Todos pareciam extraordinariamente desinteressantes como se apenas se arrastassem na vida, não pareciam ter grandes ambições para lá das fronteiras da cidade. A Afrodite apresentou-me algumas pessoas embora, intimamente, ela apenas conhecesse dois rapazinhos, Martin Miller e Cameron Dev, e uma rapariga, Hera Brooker.

O meu olhar cruzou o de Martin, senti as presas com vontade de sair, o cheiro que emanava dele era por demais apetitoso. Esforcei-me por manter uma aparência calma e descontraída quando comecei a sentir o sangue ferver e os olhos dilatar. Sabia perfeitamente que aqueles segundos tinham bastado para o seduzir, para o levar a procurar-me.

- Então o que achaste? - Perguntou-me enquanto descíamos a rua de volta à loja onde a Afrodite trabalhava.

- Dos inóspitos corredores ou dos enfadonhos estudantes? - Respondi subindo as sobrancelhas.

- Sim, é uma reação comum. - Pela primeira vez o sorriso da Afrodite não foi tímido.

Sorri-lhe de volta, aos poucos a Afrodite ia começando a cicatrizar as feridas abertas, apesar da amargura notava-se que era uma rapariga genuinamente boa, continuava a fazer a sua vida sem se autodestruir nem culpar o mundo que a rodeia. De tantos seres antigos que conhecia poucos seriam capazes de tal atitude. Poucos me surpreendiam e, no entanto, havia qualquer coisa nela que me prendia a atenção, parecia um ser especial.

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