25 - Oportunidades

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O silêncio que se abateu sobre o carro tornou-se inebriante, por motivos de força maior o Martin foi jogado dentro do carro sem dó nem piedade, como resultado ia no assento do meio ensalsichado entre Hera e Afrodite. Ao olhar pelo retrovisor a sua expressão era semelhante a um extremista branco entalado em dois negros. Reprimi um riso. A Diana tirou os olhos da estrada por instantes tentando perceber o que me divertia.

A esta hora de viagem calculei que o Martin tivesse feito milhentas perguntas desconexas e despropositadas para preencher as lacunas e a incompreensão característica dos humanos. Em vez disso cozera a boca. Porém as dúvidas e as reticências estavam bastante presentes. Naquilo tudo perdera a minha bolsa de sangue fresco e aquele artificio embalado já me começava a enjoar. Talvez, só talvez, poderia fazê-lo voluntariar-se para o continuar a ser.

"Nem penses", soletrou a Diana entre lábios. Revirei os olhos inconformada respondendo-lhe da mesma forma "Desmancha prazeres!". Inevitavelmente ambas nos rimos, o que despertou curiosidade nos passageiros de segunda classe. A Hera abriu a boca mas não deixou escapar nenhum som ao fitar o meu olhar pelo espelho interior. A Afrodite voltou a encostar a cabeça ao descanso do banco e perdeu-se no seu mundo, certamente melhor que o real.

- Encosta à primeira oportunidade que tiveres. - Ordenei ao olhar para os olhos pesados da Diana.

Ainda recebi um olhar de soslaio da parte dela antes de anuir. O orgulho da Diana sofria gravemente de inchaço agudo, qualquer insinuação, por muito mínima que fosse, de incapacidade para realizar a tarefa provocava uma reação negativa das sinapses. Neste caso percebeu que não tinha mal nenhum em trocar comigo ao final de 3h a conduzir consecutivamente, isso e os restantes estarem ferrados a dormir. A mim não me custaria grande coisa conduzir as seguintes 5h até Bree.

A Diana adormecera pouco depois de termos trocado de lugar e instantes após, o Martin acordou desorientado, parecia repreender-se por tê-lo feito. A única diversão disponível era ele porque o breu da noite ocultava qualquer outro automóvel.

- Da última vez que verifiquei, dormir não é crime nenhum! - Disse divertidamente.

Pelo vidro vi-o piscar os olhos meia dúzia de vezes, ou tentando despertar ou marcando uma posição, fazendo um esforço para não responder.

- Com vocês é!

O Martin tentou, desesperadamente, soar descontraído mas a voz atraiçoou-o, o nervosismo de ali estar era impossível de esconder. No entanto, ali estava, quieto e calado como um animal assustado e obediente. Naquele momento admirei-o por isso, lutava contra todos os instintos humanos de fugir ou de interrogar, de se sentirem miseráveis.

- Cassandra?

A voz trêmula do Martin acordou-me dos meus pensamentos, não esperava que ele prenunciasse o meu nome, que me chamasse. Esperava perguntas vãs e secas perdidas no tempo feitas em desespero de causa, não perguntas para preencher o vazio, perguntas para compreender a situação em vez de lhe fugir.

- Que é Martin? - Perguntei algo confusa.

- Porquê? - Encheu o peito de ar para conseguir dizer a palavra de uma só vez.

- Tenta ser mais específico nas questões Martin. - Ocorriam-me alguns porquês que o poderiam atormentar como porquê eu?, porque o fizeste?, porque me obrigaste a vir?... Talvez ainda houvessem mais hipóteses numa mente humana, por isso não sabia qual iria ele abordar primeiro, certamente as percorreríamos a todas.

- Porque me compeliste?

A pergunta atingiu-me como a gravidade. A resposta era tão óbvia por um lado e tão questionável por outro. Obriguei-me a verbalizar uma resposta após ter olhado para ele pelo espelho central, os seus olhos imploravam uma resposta, queria genuinamente saber a verdade. Verdade essa que nunca me cruzara o pensamento.

- Bem Martin, nunca deliberei sobre o assunto. Faço-o porque posso. - A cor das suas faces fugiu fugazmente. - E por inúmeras outras razões que de certo te passam pela cabeça. Nunca me iria expor assim, não gosto de coisas incontroláveis. Nenhum vampiro gosta. Para além disso era uma relação simbiótica, só não sabias que eu ganhava um ingrediente extra na receita.

- Porque não me mataste?

Muito bem, tínhamos tirado a noite para as perguntas ingratas e obscuras. No entanto àquela sabia exatamente o que responder.

- Porque não quis. A intenção nunca foi essa, aliás não mato por puro prazer, posso drenar uma pessoa mas nunca a deixo ensangue, de modo a reanima-la depois.

- Porque me escolheste?

Bolas, onde é que o rapaz ia desencantar as questões?! Olhei para ele, desta vez diretamente rodando a cabeça para o banco de trás.

- O teu sangue atraiu-me e eu atraí-te. Não precisei de grande esforço, tu procuraste-me. Seria demasiado rude dizer que não passou de uma oportunidade? Compreendo que possas achar que existiam sentimentos envolvidos mas não, pelo menos verdadeiros não, platônicos ou ilusórios talvez. Tudo em mim foi desenhado para seduzir, para sugar corpo e alma.

Naquele momento limitei-me a responder diretamente ao interrogatório sem filtros ou tabus. O estado perplexo de Martin manteve-se ao longo de alguns quilómetros, remoendo no que ouvira, guardando a informação nos devidos lugares do puzzle tentando alcançar o final do calvário. Como estávamos numa onda de sinceridade partilhada, não pude deixar de perguntar.

- Queres que te faça esquecer tudo isto? A tua vida deixaria de ter vampiros e bruxas a baterem-te à porta, poderias continuar a tua vida simples e despreocupada no teu mundo meramente humano, sem raptos, nem hipnoses nem desesperos. - Fiz uma pausa deixando-o processar. - Antes só preciso que nos ajudes a encontrar a Alana em Bree, depois disso és livre para seguires o caminho que quiseres.

- Não sem antes apanhar o sacana que assassinou os meus melhores amigos! - Rosnou trocando o ar de animal abandonado pelo lado feroz.

Um buraco na estrada fez o carro saltar acordando a Diana, a Hera e a Afrodite. Não que houvesse muito mais a relatar mas a minha conversa com o Martin ficaria decididamente por ali. Uma placa branca em chapa metálica anunciou a entrada em Bree. A cidade estava exatamente como me lembrava, casas térreas ocupavam os largos e amplos terrenos que serviam para garantir a subsistência da população local. Não percebera se contrariado ou não, o Martin indicou o caminho nas muitas curvas e contracurvas que caracterizavam o ambiente.

- É ali.

O Martin apontou para uma casa amarelada de três andares com vários sinais de deterioração, o jardim de acesso à casa estava mal cuidado, talvez até abandonado ao seu próprio destino onde as espécies mais fracas e elegantes tentavam expulsar as dominantes e intrometidas ervas daninhas. A porta e as quatro janelas de madeira aguentavam-se nos pregos enferrujados das dobradiças, a única janela com um aspeto mais novo, onde o bicho do caruncho ainda não tinha viajado, era a do último andar, provavelmente resultado de uma ampliação posterior à construção inicial.

Estacionei o carro na entrada da casa, o caminho por entre as milhentas ervas espinhosas mal se via, obrigando-nos a contorná-los. Depois de alguns guinchos batemos à porta, uma e outra vez, nenhuma luz se acendeu nem nenhum movimento se ouviu. Passado pouco tempo ouvi o restolhar de folhas secas e um vulto, uma rapariga de vestido azul, a correr saída da parte traseira da casa.

Ia desatar a correr atrás dela, deixando-os ali especados sem perceber o que se acabara de passar. A questão é que não me levaria a lado nenhum. A Diana bateu de novo na porta.

- Escusas. - Pronunciei algo resignada. - Ela acabou de sair pela porta das traseiras.

- Então estás à espera de quê para ires atrás dela? - Resmungou o Martin ansioso que aquela aventura acabasse.

- Não me parece que persegui-la seja a melhor abordagem! - Contrapôs a Diana.

- Infelizmente sou forçada a concordar, se tivesse corrido atrás dela, tinha-a apanhado no sítio exato onde a vi sair. Seria encarado como uma ameaça e não é disso que precisamos!

- Então...? Vamos na mesma segui-la, que diferença fazia? - Perguntou a Hera histérica.

- Vamos segui-la, não caçá-la. Faz diferença. - Argumentei.

Dito isto voltamos a entrar no carro seguindo junto ao denso mato por onde ela se escapulira.

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