Capítulo IX

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Ninguém é forte o tempo todo, porque nem todos conseguem, nem todos querem e nem todos precisam ser.

O que seria ser forte? Aguentar uma grande quantidade de peso ou sobreviver a vida? As pessoas têm uma mania feia de rotular tudo, as dores como sendo maiores ou menores, suportáveis ou insuportáveis e por aí vai. É tão ridículo caracterizar os sentimentos dos outros. Os sentimentos são dos outros, não tem nada a ver comigo ou com você. Tem a ver com aquela pessoa, com o que ela passa, com o que ela lida todos os dias. Coisas que inclusive você não sabe, na verdade, você nem sonha. Porque as pessoas que mais sofrem, que mais choram, são aquelas que fazem você sorrir, que fazem você gargalhar alto, são aquelas que seguram o mundo de um estranho só para aliviar um pouco a carga, mesmo estando com os ombros cansados.

Na frente dos outros não deixamos a peteca cair, não deixamos o sorriso sumir, não deixamos a piada perder a graça. E sim, eu faço parte desse grupo. Sou da turma dos palhaços, dos "só presta para rir".

Sorrimos porque é mais fácil, é mais aceitável e não porque somos felizes.

Até porque no meu caso, ser feliz nunca foi meu forte.

...

Era um sábado e só faltava minha irmã ficar pronta para saírmos. Eu e minha mãe estávamos tão impacientes que resolvemos ir na frente. Paciência é algo que não possuo muito e nem teria de quem ter herdado.

Tudo parecia normal, sempre parece na verdade, não é como saber que o gás está prestes acabar ou que a caneta vai estourar.

Uma moto passou nos olhando e parou mais a frente.

Os dois homens até então desconhecidos tiraram os capacetes.

...

Se isso acontecesse hoje, eu teria me desmanchado em bosta só nessa paradinha.

Mas, enfim.

...


Eles pareciam dois clones do meu pai. Ficaram nos olhando a uma certa distância e minha mãe logo se aproximou. Desloquei o quadril para o lado e fiquei observando tentando fazer leitura labial, minha mãe parecia chocada e eu fiquei contando a quantidade de interrogações que estavam rondando a minha cabeça. Quando tentei me aproximar minha mãe fez sinal para que eu esperasse.

Demorou o equivalente a uma eternidade até que eles foram embora.

— E aí? O que foi?  perguntei.

Seus olhos estavam desorientados, como se sua cabeça estivesse organizando os fatos e procurando as palavras certas.

 Mainha?  chamei novamente.  

 Eles são seus tios. Vieram falar com a gente. Melhor voltarmos, eles estavam indo la pra casa, mas, acabaram nos encontrando antes.

Meus tios? Eu mal sei os nomes deles e quantos são. Na verdade, eu mal sei quem são eles. Seria algo com minha avó? Sei lá, eu não sabia o que pensar, muito menos o que esperar.

— Tios? E queriam o que com a gente? Por que a senhora não deixou eu ficar perto? Aconteceu alguma coisa com minha avó?

Repeti a mesma coisa pelo menos duas vezes, até ela finalmente dizer.

— Seu pai sofreu um acidente.

...

Lembro que nessa hora eu fiquei buscando alguma imagem do meu pai nas minhas memórias e não encontrei.

...

—  Acidente de que? Como assim? Ta em que hospital?

Minha mãe fechou os olhos por um tempo e eu fiquei esperando uma resposta.

— ... E morreu.

Ergui as duas sobrancelhas e fiquei olhando para ela.

Dor, raiva, tristeza, vontade de chorar? Nada. Simplesmente nada.

...

Meu pai morreu sem ter sido um pai. Eu perdi um pai sem uma lembrança paterna, sem uma coisa boa para lembrar.

O vazio continuaria vazio.

...

Entramos em casa e minha irmã mais velha estranhou.

— Oxe. Eu já estava saindo pra encontrar vocês lá.

Sentei na cama e fiquei olhando para a parede. Ana falava, minha mãe falava, mas eu não escutava. Eu não estava ali.

~

Me peguei lavando a louça enquanto alguns amigos da família chegaram, me abraçaram e falaram aquelas coisas típicas de quando se perde alguém. Mas na minha cabeça ele não tinha morrido. Na minha cabeça ele estava vivo e bem com a família dele em algum lugar do mundo.

...

As vezes não saber ou não ter certeza sobre algo é reconfortante. Eu não sabia onde ele morava e nem o que ele realmente fazia da vida. Mas eu ainda tinha um pai. Não importava se ele não dava a mínima, mas ele estava vivo.

E agora eu sabia que não estava mais, eu sabia que ele tinha morrido e que nunca mais eu o veria novamente. Eu tive certeza de que não haveria mais nada além daquele ponto final. Ele não voltaria atrás, não tentaria reconstruir nada, não tinha mais jeito para nada. Ele tinha voltado ao pó sem ter sido nada demais para mim. E isso foi o que doeu. Perder o que de fato nunca foi meu, querer lembrar de coisas que não aconteceram, chorar pelo que deveria ter sido e não foi. Mais do que isso, nunca seria.

...

Eu não conhecia metade daquelas pessoas. Ironia porque eu fazia parte daquela família.
Sentada no sofá da sala de uma senhora que por sinal era a minha avó, fiquei observando meus tios, meu primo e me perguntei como as coisas seriam se tudo fosse diferente. Não cheguei a nenhuma conclusão, apenas me deixei levar pelas lágrimas que molhavam meu rosto sem fazer barulho.

...

A vida é tão frágil, em um piscar de olhos já foi, passou, acabou. E tudo o que fica são as lembranças. A morte do meu pai foi um choque de realidade. Eu não quero morrer sozinha sem ter uma pessoa para subir lá na frente e dizer uma ou duas qualidades minhas. Eu quero ser lembrada com lágrimas de saudade e com um sorriso de boas lembranças. Eu quero fazer falta pelo que eu fiz e não pelo que eu não fiz. Tudo que tem que ser feito, que seja feito em vida.

Eu não queria perdê-lo, mas perdi.

Que fique entre a gente, mas as vezes, eu sinto que a morte anda ao meu lado.

Vomitei Borboletas Mortas [EM REVISÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora