— Acorda, Marina — sussurra Ian.
Acordo meio grogue e demoro a perceber que estou na casa de Ian. Ele está ao meu lado, parecendo preocupado. Sento na cama.
— Me desculpa, aconteceu de novo — murmura Ian.
— Tudo bem. Sei que isso pode acontecer às vezes — digo, aproximando-me. Vejo alívio em seu olhar.
— Eu te amo — ele me abraça, e ficamos assim por alguns minutos.
Vejo pela janela que o sol já está começando a brilhar lá fora. Sinto o cheiro de Ian e começo a sorrir; sempre amei seu cheiro de homem.
— O que aconteceu desta vez? — pergunto cautelosa.
— Desde aquele dia em que me ligaram lá no hotel, tenho tido um mau pressentimento.
— Isso já passou. Não vai acontecer nada — tento acalmá-lo, mas ele percebe que não fui sincera.
— Eu não gosto quando isso acontece. Odeio te machucar, eu estava te enforcando — vejo dor em seu olhar.
— Ian, você sabe que quando matou aquele homem foi em legítima defesa. Não se culpe por isso.
— Não importa se foi por defesa ou não, eu tirei uma vida. Isso é... inaceitável. Sou um monstro, só você que não percebe isso, Marina.
— Ian, você é um ótimo homem. Você cometeu um crime, e você não pode deixar isso te definir. Você não é os seus erros, já passou. Sei que essa situação é muito delicada, precisamos de ajuda para lidar com isso.
— Existem maneiras melhores de um ser humano mudar, Marina. Matar alguém não é a melhor forma de aprendizado. Eu carrego essa culpa, e sei que vou levá-la pelo resto da minha vida — Ian diz angustiado.
— Pense que você salvou a vida de uma criança, e ela é grata a você. Se não fosse por você, aquele homem asqueroso teria feito coisa pior.
— Eu sei — Ian diz, suspirando.
— Se eu pudesse tirar essa dor de você... — digo.
— E se aquela ligação foi de alguém querendo se vingar de mim? Isso seria péssimo, tenho um filho. — Ian se levanta e vai até a janela.
— Aquele homem não tinha ninguém. Lembra o quanto aquela criança te agradeceu quando você a salvou? Ela disse que não aguentava mais aquela vida.
— Só você mesmo para me acalmar — Ian diz e me abraça novamente.
O celular de Ian começa a tocar, e nos assustamos. Estava tudo muito silencioso.
— Quem é? — indaga Ian, curioso.
Fico próxima de Ian para poder ouvir quem está do outro lado da linha.
— Oi, é do hospital. Flaviane pediu para te ligar, o estado dela parece ser grave.
Com isso, a pessoa do outro lado desliga. Seguro a mão de Ian e tento transmitir segurança; vejo gratidão em seu olhar. Levantamos e nos arrumamos rapidamente.
Já dentro do carro, fico observando o trânsito. Vários carros indo e voltando, cada um com sua vida, responsabilidades e problemas para resolver. Às vezes, quando ando pela rua e vejo pessoas, fico imaginando como é a vida de cada uma. Se têm filhos, se os pais ainda são vivos... E, por mais que você possa imaginar milhares de possibilidades, sempre haverá mais.
Por mais que sua vida esteja ruim, é melhor agradecer mesmo assim, pois sempre haverá alguém em situação pior. E quando você vê uma pessoa com mais problemas que você, vem aquela sensação de que, apesar das dificuldades, somos felizes.
Deus é maravilhoso do jeito que é. Tantas vezes, em meio aos problemas, me questionei se Ele realmente existia, mas depois me sentia péssima e percebia o quão bom Ele é. Mesmo com problemas, Ele está ali por você. Ele nunca me abandonou, sem contar que é bom ter em quem acreditar, em quem depositar sua esperança e fé.
Certa vez, um amigo meu disse que quem acreditava em religião eram pessoas medrosas, que precisavam de algo em que acreditar e culpar. Fiquei com raiva e não falei com ele por uma semana inteira.
Mas enfim, cada um tem seu jeito, e esse é o meu. Indo em direção ao hospital, sinto que Flaviane não está mais viva, mas sei que terei que ser forte. Ian vai precisar de mim; sei que vai doer, e serei seu único apoio em meio ao luto.
— Chegamos — exclama Ian, rouco.
— Como sabe que é esse o hospital? O médico não disse o nome.
— Já conheço a voz do médico — responde Ian, triste, passando a mão pelos cabelos.
Seguimos em silêncio. Passamos por dois corredores e viramos à direita. Na terceira porta, Ian bate e entra. Flaviane está deitada na cama, pálida. Há um médico ao seu lado, perdido em pensamentos, olhando para a janela atrás da cama.
— Não pode ser — rosna Ian.
Seguro a mão de Ian, e o médico se vira, sobressaltado. Parece envergonhado e triste.
— Tentamos de tudo — argumenta o médico, cabisbaixo.
— Mas não o suficiente — grita Ian.
— Sinto muito, já faz cinco minutos que ela se foi — diz o médico.
— Seu infeliz, não sabe nem salvar uma vida. Some daqui.
Olho para o médico e tento pedir desculpa com o olhar; ele parece compreender e se afasta gentilmente.
Ian vai até Flaviane, pega sua mão e começa a chorar como uma criança. Meu coração se aperta, e logo as lágrimas começam a escorrer pelos meus olhos também. Aproximo-me de Ian, o abraço por trás e encosto meu rosto em suas costas. Depois de uns dez minutos, o médico volta em silêncio.
— Acho melhor vocês irem — diz o médico, tranquilamente.
Pego a mão de Ian, vejo que ele não percebe nada do que está acontecendo ao seu redor. O conduzo até o carro, e o médico diz que, quando tudo estiver pronto, ele ligará.
Levo Ian até o carro e pego a chave em seu bolso. Vamos ao shopping e compro algo para comermos. Ian ainda parece não estar ciente de nada, e o deixo quieto em seus pensamentos.
Escolho algo simples, pois não estou com muita fome. Insisto para que Ian coma alguma coisa, e depois de muitas tentativas, ele acaba aceitando.
—&—
O velório está silencioso e com poucas pessoas. O sol já está se pondo, e é hora de enterrar Flaviane.
Meu coração está sangrando, e vejo que o de Ian também.
Depois de enterrar Flaviane, voltamos para casa. Ian vai direto para a cama e começa a soluçar. Sei que, de modo geral, para a sociedade, o homem não chora, e mesmo sabendo que isso é mentira, ainda assim, continua sendo estranho ver um homem chorar. Eles são considerados fortes e inabaláveis.
Aproximo-me de Ian e tiro seu terno preto, deixando-o só de cueca. Tiro meu vestido longo preto de renda, pego uma camisa de Ian e a visto. Ele parece não perceber nada.
Deito-me ao seu lado, ele me abraça forte, como se eu pudesse fazê-lo esquecer tudo. Infelizmente, não sou sua panaceia.
— Não me deixe, só tenho você e meu filho agora — ele diz, rouco.
Tento dizer que sim, mas acho melhor não prometer algo que não tenho certeza se poderei cumprir. Dou um beijo em Ian, e isso parece acalmá-lo um pouco.
Logo, Ian está dormindo. Fico pensando: o que é a morte? Quando pessoas que não conhecemos morrem, parece algo comum, mas quando é alguém próximo, tudo fica estranho. "Eu a vi ontem", "Conversei com ele ontem", "Como pode ser?". São frases comuns quando se perde alguém, mas não deixam de ser dolorosas. Eu também me questiono como é possível: num dia, você vê a pessoa com os olhos abertos e respirando, e no outro, sem vida, e não há nada que se possa fazer para trazer aquela pessoa querida de volta.
E com esses pensamentos, acabo dormindo profundamente.
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Além do amor
RomanceO que você faria pelos homens da sua vida? Marina foi para São Paulo em busca de uma vida melhor. Só que levou junto um grande segredo. E após alguns anos resolve voltar para sua cidade natal e enfrentar seu passado. Só não imagina que o amor que ta...