19- Ressaca moral

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Depois de toda aquela confusão com a mãe do Alex, senti que haveria algum tempo de calmaria e estava certa. Teresa baixou a guarda e assumiu o papel de avó carinhosa durante o final de semana, sempre próxima, querendo saber como me sentia, do que precisava e se estava confortável. Seria impossível para alguém não estar confortável naquela casa, considerando o espaço, a organização e qualidade dos móveis. Eu tinha consciência que Alex não era um pé-rapado, mas o nível social dos Torres com certeza estava acima da média. A simplicidade e humildade do meu melhor amigo fizeram-me admirá-lo ainda mais, algo que eu considerava impossível. Alex não fazia diferença de ninguém, sempre cativante, alegre e solicito, era o verdadeiro bom moço. Sentada na espreguiçadeira do lado externo da casa, observando meu amigo brincar feito criança com três rotweilleres enormes, submergi em pensamentos e probabilidades tão inacreditáveis que me fizeram perder um pouco a noção de tempo. Alex foi derrubado no chão pelos cachorros que o atacavam com mordidinhas e uma série de lambidas muito molhadas de baba canina, que me fizeram torcer o nariz com um pouco de nojo, e ver a guerrinha dos bichos para disputar a atenção e o afeto do meu melhor amigo arrancou-me um sorriso enorme.

- Posso pegar um babador se quiser... - A voz conspiratória da Joana me tirou daquele estado contemplativo. - Eu tinha comprado para o bebê, mas ele ainda vai demorar a usar.

- Muito engraçadinha. - Fiz uma careta para ela.

- Careta? - Ela riu alto enquanto sentava-se num espaço que sobrava na minha espreguiçadeira. - Muito madura, Ana Maria.

- Kika, por favor.

- Vai ser muito atrevimento pedir para contar o motivo de odiar seu nome?

- Não odeio meu nome... - Expliquei. - Só acho muito formal, como se estivesse sendo chamada atenção. Ou como se fosse uma idosa de setenta anos.

Joana riu novamente, achando graça da minha argumentação. Ajeitou-se melhor na cadeira e ficou tentando limpar uma sujeirinha inexistente em seu short.

- Qual a origem do apelido?

- Minha avó teve uma irmã que tinha esse apelido. - Olhei para minhas mãos, um pouco desconfortável. - Elas se amavam muito, Kika era o mais próximo possível de uma heroína para minha vó.

Um sorriso compreensivo esboçou-se no rosto de Joana e ela tocou minha perna com delicadeza.

- Kika era uma mulher forte e determinada, que lutou muito para sobreviver à uma doença congênita no sangue. - Minha voz ficou tornou-se um pouco trêmula. - A estimativa de vida era trinta anos, nos casos de sucesso. Kika viveu trinta e três...

- Ela morreu?

- Ela se descuidou por causa de sua obstinação em ser esposa, mulher, tentar ser mãe (ela vivia tentando engravidar, era seu sonho), querer graduar-se numa faculdade Federal que consumia seus dias e noites. - Sorri com tristeza. - Quando ela deu entrada no hospital com um grave problema no intestino, que simplesmente parou de funcionar por duas semanas, mas por estar tão focada em fazer tudo ao mesmo tempo Kika deixou de notar um fato corriqueiro, já era tarde demais.

- Nossa...

- Havia uma massa empedrada em seu intestino, apodrecida.

- Meu Deus...

- Ela foi submetida à uma cirurgia, mas os pontos romperam-se dois dias depois. Vovó tinha passado a noite anterior com ela por estar estudando para ser enfermeira, mas sentiu-se uma fracassada por não ter conseguido ajudar sua irmã.

Os olhos de Joana estavam vidrados nos meus, tensa e respirando ansiosamente.

- Os pontos abriram dentro do intestino e ela teve infecção generalizada.

- Pelo amor de Deus, Ana. - Joana exclamou horrorizada. - Você gosta tanto desse apelido porque mesmo??

- Porque me faz sentir forte, destemida, uma guerreira assim como a verdadeira Kika, que venceu todas as probabilidades e superou as expectativas. - Expliquei com o paixão impressa na voz. - Ela lutou pelo sim mesmo diante de tantos nãos, e não importa que tenham sido só por três anos, mas ela venceu.

Joana me abraçou com os olhos cheios de lágrimas, apertando-me dentro de seu abraço. Um sorriso desenhou-se no meu rosto e pensei no quanto tinha sido abraçada naquele final de semana.

- Essa é a parte boa de ser Kika?

- Tem muitas partes boas, Joana. - Comentei alegremente. - A maioria das lembranças de minha avó são incríveis, Kika foi uma mulher especial e é um privilégio poder honrar sua memória.

- Posso perguntar uma coisa?

Mais uma? Minha mente lembrou-me automaticamente, mas acabei assentindo com a cabeça.

- É só amizade com meu irmão?

Olhei de volta para Alex que agora estava dando banho nos cachorros com uma mangueira, fazendo uma bagunça só enquanto eles bebiam água diretamente da borracha, e atropelavam uns aos outros sem parar.

- Ele é muito importante pra mim.

- Eu imagino, mas um bebê?

- Eu não sei o que dizer. - Admiti.

- Diga a verdade. - Ela suplicou com os olhos cheios de expectativa. - Você ama meu irmão?

- Claro que sim! - Exclamei. - Ele é meu melhor amigo!

- Não tô falando disso, Kika. - Joana revirou os olhos e voltou a me encarar.

- Acho que você está apaixonada pelo Alex.

- O quê?

- Sim, exatamente isso. - Ela continuou e eu senti minha musculatura tensa. - Amor, Kika. Paixão, tesão, o que quiser chamar.

- Não... Não é nada disso.

Levantei-me da espreguiçadeira, sentindo que meu espaço pessoal havia sido seriamente invadido. Joana permanecia sentada, mas seus olhos expressivos estavam fixos no meu rosto.

- Você precisa admitir o que sente.

- Com todo respeito, Joana. - Senti que o sangue havia fugido do meu rosto. - Você não sabe nada a respeito dos meus sentimentos. Com licença.

Minha intenção não foi ser rude, tampouco grosseira.  Eu precisava de espaço e sabia que logo Alex viria ao meu encalço para fazer perguntas sobre a conversa com sua irmã. Eu precisava estar tranquila, estabilizada para descrever os fatos sem parecer descompensada. Aproveitei para tomar um banho e refletir na quantidade de absurdos sugeridos pela irmã do meu melhor amigo.

Só porque escolhi ter um filho com Alex significava que estava loucamente apaixonada por ele? Eu acreditava veementemente que não. Não mesmo!

O bebê do meu melhor amigo (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora