O moreninho - l.s

XII - Meia hora embaixo da cama

Não tardou que Niall, como bom amigo e hóspede, viesse em auxílio de Harry. Em verdade que era impossível passar o resto da tarde e a noite inteira com aquela calça, manchada pelo café; e portanto, os dois estudantes voaram à casa.

Harry, entrando no gabinete destinado aos homens ia tratar de despir-se, quando foi por Niall interrompido.

- Harry, uma ideia feliz! Vai vestir-se no gabinete das moças.

- Mas que espécie de felicidade achas tu nisso?

- Ora! Pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelho em que elas se miram? De te aproveitares das mil comodidades e das mil superfluidades que formigam no toucador de uma moça? Vai! Sou eu que te digo; ali acharás banhas e pomadas naturais de todos os países; óleos aromáticos, essências de formosura e de todas as qualidades; águas cheirosas, pós vermelhos para as faces e para os lábios, tecido de lã fino para esfregar o rosto e enrubescer as pálidas, escovas e escovinhas, flores murchas e outras viçosas.

- Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meu coração adivinha...

- Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d'asno.

E, isto dizendo, Niall empurrou Harry para o gabinete das moças e se foi reunir ao rancho delas.

Ai do pobre Harry! Mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que também se achava manchada, ouviu barulho que faziam algumas pessoas que entravam na sala.

Harry conheceu logo que eram as moças, porque estes anjinhos, quando se juntam fazem conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se é sediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há remédio senão dizer que muitas se assemelham a uma orquestra de peritos instrumentais, na hora dá afinação.

Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer a pessoa alguma: em ceroulas e nu das cintura para cima, faria recuar de espanto, horror e vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que, certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as mãos.

E, portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à mente: ajuntou toda a sua roupa, enrolou-a, e com ela embaixo do braço escondeu-se atrás de uma linda cama que se achava no fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas, ainda outra vez, pobre estudante! Teve logo de se agachar-se e espremer-se para baixo da cama, pois quatro moças entraram no quarto.

E eram elas D. Sophia, D. Gigi, D. Ellie e uma outra por nome de Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada, muito estufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que mais acreditava que era, isto é, bonita.

Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outros objetos que estavam todos muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatro madames não puderam resistir ao prazer, muito habitual nas moças, de desarranjar para outra vez arranjar, foram por mal dos pecados de Harry, sentar-se da maneira seguinte: D. Ellie e D. Sophia na cama, embaixo da qual estava ele; D. Gigi de um lado, em uma cadeira, e D. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava os olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para lhe caber sem incômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade de enchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com D. Gabriela, segundo suas próprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a certos respeitos.

Depois de respirar um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram a conversar livremente, enquanto Harry, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teias de aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quieto, medroso de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir; para seu maior infortúnio, a barra da cama era incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura descobertos, por onde, se alguma das moças olhasse, seria ele impreterivelmente visto. A posição do estudante era penosa, certamente; por último, saltou-lhe uma pulga à ponta do nariz, e por mais que o infeliz a soprasse, a teimosa continuou a sugar com a mais descarada impunidade.