A cena que se passou teve lugar numa segunda-feira. Já lá se foram quatro dias, hoje é sexta-feira, amanhã será sábado, não um sábado como outro qualquer, mas um sábado véspera de Sant'Ana.
São dez horas da noite. Os sinos tocaram a recolher. Harry está só, sentado junto de sua mesa, tendo diante de seus olhos seis ou sete livros e papéis, pena se toda essa série de coisas que compõem a mobília do estudante.
É inútil descrever o quarto de um estudante. Aí nada se encontra de novo. Ao muito acharão uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde pendura o casaco, o moringue, o castiçal, a cama, uma, até duas cestas de roupa, o chapéu, a bengala e a bacia; a mesa onde escreve e que só apresenta de recomendável a gaveta, cheia de papéis, de cartas de família, de flores e fitinhas misteriosas, é pouco mais ou menos assim o quarto de Harry.
Agora ele está só. Às sete horas, desse quarto saíram três amigos: Niall, Zayn e Liam. Trataram da viagem para a ilha de Paquetá no dia seguinte retiraram-se descontentes, porque Harry não se quis convencer de que deveria dar um ponto na Clínica para ir com eles ao amanhecer. Harry tinha respondido: Ora vivam! Bem basta que eu falte na aula de partos; não vou senão às dez horas do dia.
E, pois, despediram-se amuados. Liam queria ainda demorar-se e mesmo ficar com Harry, mas Zayn e Niall o levaram consigo, à força. Liam fez-se acompanhar do moleque que servia Harry, porque, dizia ele, tinha um papel de importância a mandar.
Eram dez horas da noite, e nada do moleque. Harry via-se atormentado pela fome, e Josh, o seu querido moleque, não aparecia... O bom Josh, que era ao mesmo tempo o seu cozinheiro, limpa-botas, cabeleireiro, moço de recados e... e tudo mais que as urgências mandavam que ele fosse.
Com justa razão, portanto, estava cuidadoso Harry, que de momento a momento exclamava:
- Vejam isto! ... já tocou a recolher e Josh está ainda na rua! Se cai nas unhas de algum policial, não é, decerto, o Sr. Liam quem há de pagar as despesas da Casa de Correção... Pobre do Josh! Que conversa não dará quando lhe raparem os cabelos!
Mas neste momento ouviu-se um ruído na escada... Era Josh, que trazia uma carta de Liam, e que foi aprontar o chá, enquanto Harry lia a carta. Ei-la aqui:
"Harry. Demorei o Josh, porque era longo o que tenho de te escrever. Melhor seria que eu te falasse, porém, bem viste as impertinências de Niall e Zayn. Felizmente, acabam de me deixar. Que macistas!... Principio por dizer-te que te vou pedir um favor, do qual dependerá o meu prazer e sossego na ilha de Paquetá. Conto com a tua amizade, tanto mais que foram os teus princípios que me levaram aos apuros em que ora me vejo. Eis o caso.
Tu sabes, Harry, que, concordando com algumas de tuas opiniões a respeito de amor, sempre entendi que uma namorada é traste tão essencial ao estudante como o chapéu com que se cobre ou o livro em que estuda. Concordei mesmo algumas vezes em dar batalha a dois e três castelos a um tempo; porém tu não ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no mais: tu és ultra-romântico e eu ultraclássico. O meu sistema era este:
1º. Não namorar moça de sobrado. Daqui tirava eu dois proveitos, a saber: não pagava o moleque para me levar recados e dava sossegadamente, e à mercê das trevas, meus beijos por entre os postigos das janelas.
2º. Não cortejar moça endinheirada. Assim eu não ia ao teatro para vê-la, nem aos bailes para com ela dançar, e poupava os meus cobres.
3º. Fingir ciúmes e ficar mal com a namorada em tempo de festas e barracas no Campo. E por tal modo livrava-me de pagar doces, festas e outras impertinências.
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O moreninho - l.s
RomanceHarry era um jovem namorador e inconstante no amor. Depois passar alguns dias na ilha de Paquetá, seu coração poderá passar a ter apenas um dono. Adaptação do livro: A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo.