Ninguém se arreceie pelo nosso travesso. O grito de dor foi, na verdade, seu; mas, se alguém corre perigo, não é certamente ele. O caso é simples.
Morava com a Sra. D. Ana uma pobre mulher, por nome Paula, muito estimada de todos, porque o era da despotazinha daquela ilha, de Sr. Louis, a quem tinha servido de ama. Os desvelos e incômodos que tivera na criação do menino lhe eram sobejamente pagos pela gratidão e ternura do moço.
Ora, todos se tinham ido para o jardim logo depois do jantar, mas o nosso amigo Keblerc achara justo e prudente deixar-se ficar fazendo honras à meia dúzia de lindas garrafas, das quais se achava ternamente enamorado; contudo, ele pensava que seria mais feliz se deparasse com um companheiro que o ajudasse a cortejar aquelas belezas: era um amante sem zelos. Por infelicidade de Paula, o alemão a lobrigou ao entrar num quarto. Chamou-a, obrigou-a a sentar-se junto de si, mostrou por ela o mais vivo interesse e depois convidou-a a beber à saúde de seu pai, sua mãe e sua família.
Não havia remédio senão corresponder a brindes tão obrigativos. Depois não houve ninguém no mundo a quem Keblerc não julgasse dever com a sua meia língua dirigir uma saúde, e, como já estivesse um pouco impertinente, forçava Paula a virar copos cheios. Passado algum tempo, e muito naturalmente, Paula se foi tornando alegrezinha e por sua vez desafiava Keblerc a fazer novos brindes; em resultado as seis garrafas foram-se. Paula deixou-se ficar sentada, risonha e imóvel, junto à mesa, enquanto o alemão, corado e reluzente, se dirigiu para a sala.
Quando daí a pouco a ama de Sr. Louis quis levantar-se, pareceu-lhe que estava uma nuvem diante de seus olhos, que os copos dançavam, que havia duas mesas, duas salas e tudo em dobro; ergueu-se e sentiu que as paredes andavam-lhe à roda, que o assoalho abaixava e levantava-se debaixo dos pés; depois... Não pode dar mais que dois passos, cambaleou e, acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com estrondo contra uma porta. Logo confusão e movimento... Ninguém ousou pensar que Paula, sempre sóbria e inimiga de espíritos, se tivesse deixado embriagar, e, por isso, correram alguns escravos para o jardim, gritando que Paula acabava de ter um ataque.
A primeira pessoa que entrou em casa foi Sr. Louis que, vendo a infeliz mulher estirada no assoalho, caiu sobre ela, exclamando com força:
- Oh! Minha mãe! – Foi este o seu grito de dor.
Momentos depois Paula se achava deitada numa boa cama e rodeada por toda a família; porém, havia algazarra tal, que mal se entendia uma palavra.
- Isto foi o jantar que lhe deu na fraqueza – Gritou uma avelhantada matrona, que se supunha com muito jeito para a Medicina. – É fraqueza complicada com o tempo frio... Não vale nada, venha um copo de vinho!
E dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na boca da pobre Paula que, por mais que lépida e risonha o fosse engolindo a largos tragos, não pode livrar-se de que a interessante deusa da medicina lhe entornasse boa porção pelos vestidos.
- É malária! – Exclamava D. Violante, com toda a força de seus pulmões. – É malária! Quem lhe olha para o nariz diz logo que é malária! Eu já vi curar-se uma mulher, que teve o mesmo mal, com cauda de cobra moída, torrada e depois desfeita num copo d'água tirada do pote velho com um coco novo e com a mão esquerda, pelo lado da parede. É fazer isso já.
- São lombrigas! – Gritava uma terceira.
- É ataque de estupor! – Bradava a quarta senhora.
- É espírito maligno! – Acudiu outra, que foi mais ouvida que as primeiras. – É espírito maligno que lhe entrou no corpo! Venha quanto antes um padre com água benta e seu breviário.
- Ora, para que estão com tal arruaça? – Disse uma senhora, que acabava de entrar no quarto. – Não se vê logo que isto não passa de uma bebedeira, que a boa da Paula tomou? Olhem: até tem o vestido cheio de vinho.
![](https://img.wattpad.com/cover/89076928-288-k980489.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
O moreninho - l.s
RomanceHarry era um jovem namorador e inconstante no amor. Depois passar alguns dias na ilha de Paquetá, seu coração poderá passar a ter apenas um dono. Adaptação do livro: A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo.