Lentamente ela foi despertando ao sentir o cheiro da relva, o chiar dos bichos e a umidade da floresta. Um aperto nos braços lhe fez abrir os olhos lembrando-se onde estava, todavia, não estava onde pensou estar. Ela estava amarrada em uma árvore muito grossa e alta, os galhos cresciam lá no topo com suas folhas pequeninas. Elisie encarou o sorriso de Sorkan com fúria, em seguida correu o olhar pela floresta, do lado esquerdo bem afastado deles estava à casa de Mercúrio completamente queimada, e diante de Elisie sentado em uma cadeira mal feita de madeira e cordas estava Mercúrio, e atrás dele, com as mãos em seus ombros estava à mulher que a torturou por um mês. Margareth fechou a mão no ombro do rei, seu olhar frio penetrava Elisie como se quisesse lhe arrancas as entranhas, seus olhos de azuis faiscantes apesar de belos revelavam sua alma corrompida, seu nariz era pontudo e curvado, e os lábios finos formavam uma curva para baixo revelando seu desgosto pelo mundo. Mas observando detalhadamente sua figura era possível ver traços de o que um dia foi belo. Seus cílios grandes e curvados, os cabelos castanhos quase loiros, a pele sem manchas. Mercúrio foi o primeiro a romper o silêncio: — Linda, não é? Mandei meus meninos plantar essa árvore aqui. É um baobá, há uma lenda lá em Nasany que quando um deus é preso um baobá nasce, pois ela é uma árvore imensa e forte como as grades poderosas dos deuses. E quando ele é liberto, sabe o que acontece com a árvore? Ela queima. Simplesmente se incendeia até não restar um galho. ― Mercúrio fez uma pausa analisando as folhas lá no alto, um sorriso débil e triste enfeitou aquele rosto velho, e continuou: —É o mesmo que vai acontecer hoje. Eu serei liberto. E essa árvore e você e seu infeliz amante serão queimados até não restar sequer às vestes. ― Elisie usou toda sua coragem para forçar um riso e disse secamente: —Sinto lhe informar, mas... você não é um deus e muito menos um semideus. Você não é nada. ― Sorkan a calou com um tapa, Mercúrio não sorriu. —Ria, pois essa será a última vez que você rirá nessa vida. O sol do meio dia já penetrava entre as copas das árvores, e Elisie precisava virar o rosto quando um filete de luz quente lhe furava o rosto com grosseria. Sorkan abriu um sorrio maior ainda quando foi observar o rosto dela empapado de suor. —Está gostando? Eu enfeiticei o seu lugar, está sentindo? O sol parece querer lhe furar a cara. Será perfeito quando tocarmos fogo na árvore, ai vocês vão queimar rapidinho. — Elisie não se deu ao trabalho de responder, e engoliu com dificuldade, sua garganta estava seca, o calor estava lhe sufocando. Passou-se um longo silêncio opressivo, um coelho passou pulando por entre eles, um pássaro se abrigou nos galhos do baobá e cantou seu grito de guerra, fazendo daquela cena de uma mulher amarrada a uma árvore, um velho e sua senhora sentados em uma cadeira e bruxos escorados em árvores próximas, uma coisa menos macabra. Elisie tentou confortar-se, queria uma morte lenta, e solitária, como dissera a ele, era verdade o que dissera ao Cordial que se ele tentasse salva-la, ela jamais o perdoaria. Não obstante como se sabendo de seus temores um som de cascos de cavalos preencheu o silêncio, os bruxos ficaram em posições de ataque, Mercúrio confiante de seus capangas não se deu ao trabalho de se levantar. E então um cavalo marrom surgiu entre as sebes. O cavalo relinchou indomável balançando suas longas crinas, e um Cordial descabelado e usando as roupas que ganhara de Loreena pulou dele. Seus olhos se prenderam por longos instantes nos de Elisie que gritava para que ele voltasse; que ele fosse para Vrisan, que ela já não era mais importante. Todavia o olhar do príncipe estava decidido. Mercúrio se levantou lentamente, animação irradiava de seu sorriso apático. Ele se aproximou de Dixon que se virou para ele, lançando seu mais odioso olhar. —Meu filho, viu como ficou a minha casa? Vocês realmente deixaram-na em cinzas. — Eu já estou aqui, agora solte Elisie. ― ele interrompeu sério, Mercúrio desfez o sorriso. —Oras meu filho, não seja apressadinho... —Estou aqui, me mate. Deixe-a ir e me mate. —Como se fosse simples. Ainda tem coisas que eu quero. Por exemplo, te ver sofrer, e eu realmente falo sério quanto a isso. —Me torture, me mate, mas deixe-a ir. Mercúrio coçou a sobrancelha, irritado, antes de erguer dois dedos para Sorkan que entendendo ergueu a mão para Dixon que caiu de joelhos, as mãos amaradas atrás das costas por cordas invisíveis. —Assim não tem graça, eu sabia. Sempre soube que matar você seria um tédio. Pensei em usar aquele velho servo que pensa que é seu pai, porém é ela o seu ponto fraco, talvez você me deixasse matar aquele velho como um presente para sua sanidade. Não o culpo. Eu realmente desejo matá-lo depois de terminar com você. — revelou Mercúrio capengando até Elisie, ele a agarrou o queixo. Dixon tentou se levantar, no entanto a única coisa que conseguiu foi cair de cara no chão. Mercúrio continuou: — Tudo recomeçou uns seis meses atrás, eu comecei a sentir tonturas, dores que não sentia há doze anos. Pensei claro, que estava velho e na velhice essas dores inevitavelmente iriam surgir; porém a pouco mais de dois meses atrás Gomon voltou para mim em uma noite infeliz e dolorosa. Eu realmente não queria acreditar que você conseguiu aprender a amar, minha querida Margareth também ficou incrédula sobre você com toda essa fama de o terrível Cordial, tendo uma fama dessas quem acreditaria que haveria um coração doido para ser preenchido? Mas cá estamos diante da criatura que conseguiu te libertar, acha mesmo que eu vou deixá-la ir? E apertou ainda mais o queixo de Elisie, os dedos ficaram longos, as unhas cresceram, mudaram de cor, tornaram-se as garras de Gomon, Elisie prendeu um grito de dor quando ele deslizou até seu pescoço e o apertou cortando uma fina pele. As lágrimas ficaram presas nos olhos, ela não iria chorar, não iria deixar seu querido marido aflito. Dixon tentou rastejar para perto dela, os olhos arregalados de pavor. —Mercúrio... eu faço tudo o que você quiser. Só deixe-a ir, esse não é um problema dela. Margareth murmurou irritada, mas Mercúrio a silenciou com um rosnado, e sorriu para Dixon. —Sabia que uma hora iríamos chegar onde eu gostaria. Sendo assim escute, não encontramos a bruxa, e eu quero Gomon fora do meu corpo, mas para isso você precisa querer ele para que meus meninos façam o trabalho. Então você aceita ter Gomon em seu corpo novamente? —Elisie lançou seu olhar para o Cordial, implorava silenciosamente que ele não aceitasse, ele tinha lutado para ser livre, e como ele tinha ficado feliz ao sentir seu coração batendo e como se sentiu livre podendo sentir sem limitações, sem dor, mas nada no olhar dela o fez mudar de ideia, ele desviou o olhar para seu pescoço, alguns filetes de sangue escorriam para seu vestido velho, e com convicção ele disse: —Eu aceito Gomon de volta. — Elisie deu um grito que saiu como um gemido e sem que o rei pedisse ao bruxo, o mesmo esticou as mãos e jogou Dixon contra a árvore que prendia Elisie, ele se arrastou até ela que respirava com dificuldade, as lágrimas começaram a cair descontroladas. —Por que fez isso...você queria tanto...ser livre. — ele negou, os narizes se tocaram enquanto sussurravam. —Não... não ligo mais para isso...quero apenas você livre. —Você é um tolo. Ele vai matá-lo. — choramingou ela tocando brevemente nos lábios dele. — Só desejo salvá-la...vo-você me fez amar...sem você eu... —Vamos logo. Sorkan sabe o que fazer?—o bruxo assentiu, fizeram um circulo ao redor de Mercúrio, Margareth se sentou aflita, a mão no peito parecia querer aquietar as batidas frenéticas. —Querido, ele está bem preso? Tem certeza que não conseguirá se soltar?— perguntou ela para Sorkan. —Não, mãe, meu feitiço de corda invisível é o melhor. Agora vamos começar. — Elisie fechou os olhos quando eles começaram a cantar com as vozes distorcidas uma música indecifrável. Mercúrio soltou um grito de dor, as garras se abriram e penetraram no chão descontroladas fazendo buracos no chão. Ele abriu a boca quando uma fumaça densa e com a forma de minúsculas moscas saiu como um enxame possesso. Elas saiam zunindo como se fossem realmente insetos e rodeavam o corpo de Mercúrio que gritava como se suas entranhas estivessem sendo arrancadas. Depois que elas estavam todas do lado de fora, outro tipo de fumaça saiu de sua boca escancarada, uma fumaça semelhante a que rodeava o corpo nu do Cordial tempos atrás, era fina e escura, dançante como um tecido fino e negro, ela invadiu a boca do Cordial que se contorceu tentando segurar os gritos de dor. Elisie soluçou, fechando ainda mais os olhos, seu marido rosnava, se batia, girava no chão tentando parar a dor, a dor que ele tinha tanto medo. Por fim, quando os gritos de Mercúrio cessaram e a fumaça mais fina saiu completamente de seu corpo, houve um momento de calmaria, até que enlouquecidas as moscas de fumaça tornaram a entrar no corpo do rei. Ele lançou olhares aterrorizados para os bruxos, e os mesmos confusos continuavam seu feitiço sem saber o que acontecia. Dixon se acalmou, estava deitado de costas para eles, e quando se virou, Mercúrio abriu um sorriso deformado pela dor latejante; porém estava aliviado, e com sua voz rouca pelos gritos disse sendo carregado até a cadeira: —O que foi isso? Por que aquilo entrou em mim, Sorkan? —Mestre, eu não sei, no entanto não vejo mais nada em você. Meu mestre, você está livre. — sem dar mais importância às moscas loucas e inexplicáveis de fumaça dentro de si, ele se dirigiu ao príncipe caído. E sorrindo ordenou aos bruxos que se sentassem ao seu lado. —Você já está liberto... agora deixe-nos ir. ― pediu a jovem. Mercúrio deu uma gargalhada de puro gozo, como se a dor que sentira minutos atrás já tivesse sumido de seu corpo e mente. —Oras, mas agora que as coisas ficarão boas. Venham, venham meninos, sentem-se ao meu lado para ver o fim do nosso sofrimento. — repetiu empolgado, de um em um os bruxos se sentaram ao lado dele. Elisie iria gritar; chamar o velho de louco, todavia sua voz se perdeu quando encarou o Cordial quando se colocou a sua frente. Metade do corpo era de seu marido, e a outra metade o homem monstro pálido e desnutrido, os olhos azuis sem brilho. A boca do lado do monstro se moveu, enquanto a outra metade ficou imóvel, Gomon disse: —Minha Lau-laura... — e ergueu a garra para tentar tocá-la, no entanto Dixon segurou-o. Elisie encarou o olho verde, ele parecia assustado, e confuso. Mercúrio resmungou entediado, e gritou para que Sorkan desse uma ajudinha, e assim que o bruxo ergueu suas mãos com as unhas corrompidas Gomon se soltou do aperto de Dixon e alcançou a barriga de Elisie. —Escute meu filho, escute, é bem interessante. ― pediu Mercúrio risonho, sem contestar Dixon fechou os olhos e usou o ouvido de Gomon. Tum...tum...tum...tum... Era uma batida de um coração pequenino e puro, era uma batida rápida de alguém apressado para crescer, para nascer. Era de fato o som mais lindo que Dixon já escutara. Os olhos dele e de Gomon se encheram de lágrimas, e um sorriu surgiu no canto da boca. Elisie os olhava, aflita sem entender o que acontecia, até Gomon parecia emocionado e feliz. —Agora arranque-o! —Mercúrio gritou excitado, Dixon arfou, o olho parou na garra de Gomon se aproximando da barriga de Elisie. —Não! P-por favor... — implorou ele naquela voz duplicada. E então Elisie olhou para sua barriga e compreendeu, mas já era tarde. Gomon lhe perfurou a barriga e o som foi diminuindo e diminuindo até parar. Nesse instante, a chuva caiu gritando no céu abafando o grito de choro do Cordial e a gargalhada possessa do rei. Elisie encarou seu marido, ele a encarou de volta, a dor da perda lhe causando chicotadas no peito. A corda que a prendia sumiu, e ela caiu no chão, desamparada. Dixon desnorteado olhou debilmente para trás, Mercúrio sorria, e abriu ainda mais seu sorriso notando o olhar que parecia de alguém que acabara de perder sua alma. Era esse efeito que ele desejava. Desejava ver Dixon sentir tudo que ele sentiu; sentir as perdas lhe chicoteando o peito. —Eu imploro... já chega... já sofremos o... —O suficiente? Oh!Claro que não. Sorkan, termine! — Por favor... Por favor, me mate, mas deixe-a viver. Eu imploro, Mercúrio, me mate, me mate. — Dixon soluçava sem se importar com o sangue que escorria de seu nariz e sumia entre as gotas da chuva. O olhar metálico do rei não amenizou, continuou impassível, cruel. Sorkan ergueu a mão parecendo desconfortável com aquela carnificina. Dixon se jogou em cima de Elisie, porém não era ela a quem eles queriam, Sorkan ergueu o príncipe, depois forçou a garra de Gomon se virar para ele, ela tocou em seu peito. —Fu-fuja... —ele ouviu o sussurro de Elisie que lutava para deixar os olhos abertos. E então Gomon sendo controlado por Sorkan penetrou o peito e arrancou o coração do príncipe Cordial. Ele viu seu coração negro avermelhado dentro da garra de Gomon dar um pulso, e então caiu de joelhos e deitando-se ao lado de Elisie. Os olhos dela se abriram por alguns segundos. Seus olhos se fitaram uma última vez, e usando toda sua força restante ele sussurrou seu discurso final: —T-todo esse tempo eu fui...o inverno tentando desesperadamente...p-plantar uma flor na neve..—ele fez uma pausa para tentar recuperar a força que se esvaia, continuou ainda mais baixo: —Q-querida... eu ...eu sabia que não iria dar certo... mas eu t-tentei acreditar que poderia dar... E-então... me esqueça, pois eu fui a primavera que sumiu no inverno...—disse por fim antes de fechar os olhos. Ela fechou os dela em seguida, confusa, perdida. E antes que fosse arrebatada para o silêncio da morte ouviu gritos; cavalos; brandir de espadas e até sentiu alguém lhe carregar e gritar seu nome, porém tudo foi sumindo, ficando cada vez mais baixo, até que veio o silêncio.
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Príncipe Cordial
FantasíaEle surgiu quando o nome podre de seu hospedeiro foi dito em lábios ingênuos e puros. Era uma fera, um monstro que necessitava roubar a pureza de vidas jovens e belas. Buscou a cura em todos os cantos, mas essa parecia mais e mais inexistente, exaus...