Já que estou num ponto onde a sinceridade não tem mais nenhum motivo para não se manifestar em mim, devo admitir - e acho apropriado fazer essa revelação neste texto - que já menti, eventualmente, nas páginas em que escrevo. Seja por comodidade, pois contornar certos assuntos às vezes é a melhor opção para manter a saúde mental intacta; seja para o agrado de outrem, isto é, uma futilidade sem tamanho mas que não pôde ser notada, devido à cegueira que o ego nos dá, de tempos em tempos; seja por qualquer outra razão. Embora não seja comum fazê-lo em meu ofício, onde costuma-se abrir o peito e escancarar os portões da veracidade, houve momentos em que as palavras ditas por mim não correspondiam às palavras reais que tentava esconder. Apesar de serem coisas pequenas - mentiras corriqueiras que estamos habituados a dizer e ouvir, fruto dos vícios sociais que temos -, ainda assim seu tamanho não anula sua existência. Essas mentiras não são vistas em meu relacionamento com a poesia; restringem-se a coisas menores. De forma sucinta, devo dizer que não sou e estou imensamente longe de ser perfeito, mas não há qualquer fingimento, em matéria de autobiografia, em meus poemas e prosas.
Esta introdução tem o único intuito de esclarecer a seguinte mensagem: quando nos comunicamos pelo cérebro, pode-se criar as fantasias mais logicamente verídicas, ainda que falsas. Para um bom utilizador da mente, é relativamente fácil a criação de estórias que tenham o mesmo nível de credulidade quanto de inverdade em seu conteúdo. No entanto, quando o coração fala, não se pode esperar nada mais que a simples e invariável verdade. Mascarar sentimentos requer um enorme esforço mental, e o rompimento da represa é sempre inevitável. Represálias levam a inquietudes, e estas ao descontrole. O domínio racional cede espaço ao grito emocional. Digo isso apenas para enfatizar que o narrador dos fatos a seguir é meu coração e, portanto, falo com o maior grau de sinceridade com o qual um ser humano pode falar.
Eu era uma criança pequena. Já se passaram alguns anos desde então, e as memórias continuam claras como a luz de um dia ensolarado. É uma ausência diferente das demais que permeiam-me a vida. Provavelmente porque as outras se referem a coisas vivas. Esta, não. Uma falta cotidiana que segue um padrão peculiar: não causa uma dor diária e incurável, sem piedade e sem trégua; não cria nascentes de rios lacrimais todas as vezes em que é sentida. Talvez sejam essas as características de uma ausência menor e, portanto, mais curta. A essa sensação especial a que me refiro, atribuo um vazio sazonal. Aparece quando quer, para lembrar-me de que ainda está lá. Causa um apego forte às condicionais da vida, especialmente o "se".
Se.
Palavra minúscula, que tanto afeta o sentimental. Mísero par de letras que acende a chama da imaginação em situações, no mínimo, inoportunas. Aquelas nas quais preferimos permanecer no mundo real, pois criar tais hipóteses seria doloroso demais para que pudéssemos lidar.
Era um tempo bom. Uma infância feliz, eu me atreveria a classificar. As fotos me relembram de suas feições e, se puxo um pouco mais para o fundo, seu jeito um pouco enrolado de falar. Algumas palavras pronunciadas rapidamente, contrações inesperadas, um sotaque proeminente. Olhos selvagens e fugazes e uma atmosfera estranhamente singular. Não dava a mínima - ou, pelo menos, não aparentava dar - ao que vestia. Calças jeans e um par de sandálias mal calçadas nos pés largos era talvez a combinação mais comum. Não nos víamos com tanta frequência, mas as festas infantis ficavam muito mais divertidas com ele; as dos mais velhos, aliás, eram sempre monótonas quando ele não estava. Salvo pelas ocasiões familiares, nosso contato não era muito. Foi, durante uns anos, uma amizade intermitente.
Certa vez, contudo, passei o final de minhas férias (que, para uma criança como eu, duravam uma eternidade) em sua casa. Ficava no interior, e era a minha primeira vez naquela cidade. De fato, foram duas semanas bastante rápidas, infelizmente. Por não estar prestando atenção no tempo, ele aproveitou a oportunidade para escapar de minhas mãos. Logo me vi sem mais dias restantes para barganhar com meus pais, e prolongar minha estada: as férias chegaram ao fim. A nostalgia proporcionada pela vontade de escrever sobre esse tema é intensa e é, de todos os sentimentos que emergem de mim, o predominante. O interior tem a intrigante habilidade de deixá-lo inerte, por exemplo, à passagem do tempo. A capital corrida e agitada é deixada de lado, como um vegetariano recusa casualmente um suculento pedaço de carne, e a lentidão e tranquilidade tomam seu lugar.
Eu era uma criança pequena. Embrenhando-me em terrenos baldios e desconhecidos. Explorando plantas esquisitas e que, com sorte, homem nenhum jamais vira. "Descobrimos uma nova espécie!" Correndo descalços de volta para casa com a boa notícia na ponta da língua para contar aos adultos. Eles riam sarcasticamente, não em reprovação ou negatividade, mas em reconhecimento à inocência nossa. E realmente, eram sorrisos inocentes e uma felicidade tão sensível a qualquer motivo; é mesmo uma pena que não vivemos de modo a preservar esse caráter, mas sim a deixar a face cada vez mais apática. A noite trazia o jantar com aquele leite com nata que, como criança de cidade maior, estava desacostumado a saborear. Não demorou, porém, para eu me apegar ao gosto adicional. Conforme eu esquecia as coisas urbanas que sempre estiveram do meu lado, menos eu sentia a necessidade de tê-las comigo. O fato é que minhas mãozinhas infantis tocaram pela primeira vez artefatos de beleza natural, como o estilingue, e isso fazia crescer em mim o desejo pela aventura. Aflorava-me a imaginação e testava-me os nervos. "Até onde você pode ir?", sussurravam as ruazinhas estreitas e as lagartixas que escapavam de minha péssima precisão.
As brincadeiras ingênuas e a comida que ousávamos tentar preparar - e conseguíamos, depois de algumas tentativas - compunham a rotina daquelas semanas. Além de todo aquele divertimento, a conversa onipresente e de distinta leveza. Olhinhos meus que brilhavam de alegria incompreensível, por poderem provar um sabor singular - o de possuir, temporariamente, um irmão mais velho. Saudoso tempo, saudosas memórias de um período que, decerto, não tem a menor possibilidade de tornar a acontecer.
Era uma segunda-feira, se me lembro bem. Não me recordo de ter sentido algo forte - ou sequer sentido emoções propriamente ditas - no exato instante em que a notícia me fora contada. Ouvi uma informação insana, como se alguém me dissesse que dois e dois são cinco, mas escutei sem nenhum alarde em minha reação, como se alguém me dissesse que dois e dois são quatro. Não havia, para aquela ocasião, raciocinado rapidamente, não acreditei no que me diziam, não por espanto, mas meramente porque não fazia sentido. Justamente por isso, não me dei conta da realidade quando soube de sua morte. Eram, para mim, palavras indefinidas, ilogicamente colocadas juntas, seu nome e o fim da vida. Uma antítese - melhor, um paradoxo, de tão absurdo que me parecia o fato. Erro grotesco de coerência da parte do locutor, que motivo o levava a dizer tais loucuras? Você obviamente haveria de estar vivo, possivelmente estaria na escola àquela hora, e mais para o fim da semana voltaria à cidadezinha interiorana pequena e paradisíaca; aquela a qual com certeza eu retornaria. Irracional aquela conversa toda de eu não poder mais vê-lo, e ele estar distante de mim. Por quê, afinal?
Para minha tristeza, eu estava errado, e você, morto.
A rejeição impulsiva e instintiva impedia-me de sofrer, pelo menos nos primeiros dias. Perguntavam-me a toda hora, aqueles que sabiam do ocorrido, se eu estava bem, e eu dizia que sim; não estava mentindo. Não havia por que razão não falar a verdade (queria eu ter conservado este aspecto, mas no mundo em que vivemos a sinceridade é uma arma ferozmente mortífera). Era apenas uma informação, uma ideia abstrata - um pesadelo, no pior dos casos, porém, ainda assim eu acreditava não ter acordado de volta ao mundo real. Realmente não te vi por algum tempo naquele mês, e não associei isto com a notícia. Pensei que, como antigamente, estávamos na parte intermitente da amizade mais uma vez. Deste modo, fui levando a sanidade e a alegria por mais alguns meses; um ou dois a mais, somente. Depois de um tempo, ponderações solitárias foram corroendo-me os sorrisos, pesando-me as pálpebras, sugando-me a vivacidade e o bom humor. O tempo em que fui resguardado de minha dor pela proteção natural e inconsciente havia acabado. A partir daí, sua ausência perdura até os dias de hoje.
Não tive a oportunidade de me despedir de você. Trocar uma última palavra, o "tchau" que todos conhecem por "adeus". Não houve uma despedida, nos termos oficiais da palavra. Eu era muito jovem, me disseram. Sem necessidade de ir para aquelas coisas. Poucos me questionaram, contudo, se eu tinha vontade de participar. Mas já são águas passadas, e não movem moinhos - nem moveriam se fossem águas presentes, também. Pois bem, faço desse texto um adeus atrasadíssimo, o lugar de se dizer o que não foi dito, mesmo que simbolicamente, para um locutor falecido como você.
As lágrimas que derramei sobre as fotos em minhas mãos eram salgadas e deveras amargas. Nas imagens, duas crianças. O retrato de uma separação indesejada e irreversível. Tenho-as ainda, mas como recordação dos bons momentos. Se é que você sequer pode ouvir meu pranto em meus pensamentos, ou lê-los no papel, quero dizer que haverá eternamente uma parte sua em meu coração, e aquela cidadezinha, onde vivemos epopeias magníficas na imaginação, é para mim um pouco do interior de qualquer lugar onde você estiver nesse momento.
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Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nome
PoetryOs poetas têm um poder: eles imortalizam tudo o que quiserem. No entanto, sua habilidade não tem nenhum efeito no mundo real. Logo, estão todos suscetíveis à morte, ainda que seus cadáveres sobrevivam em suas páginas. No terceiro e último Poesia Div...