- O que quer dizer com isso? - replicou, em vão, o visitante. Já não se ouvia mais nada do velho, a não ser os passos rumo à escuridão. Rick pôs-se a acompanhá-lo, seguindo o precário fio de luz emanado à distância pela lamparina.
A princípio, não era difícil manter o mesmo ritmo. Todavia, logo nos segundos subsequentes, o brilho da luz foi se perdendo, mergulhando nas ranhuras da madeira, nas paredes imundas e descascadas do corredor descendente. Rick apertou o passo, a fim de manter-se iluminado, mas não obteve sucesso. Parecia-lhe que sua velocidade era diretamente proporcional à da lamparina - e, aliás, somente a lamparina estava visível. Os braços que a seguravam, bem como o corpo ao qual eles estavam acoplados, não podiam ser vistos. Não foram necessários muitos minutos para o homem carecer por completo de luz e não ver nada além do Nada. Com o pulso acelerado e tentando manter o controle, tentou continuar descendo a escada como estava fazendo, valendo-se da memória muscular do ritmo e da posição de cada degrau. O método funcionou, de início. Porém, seu raciocínio só lhe fora útil até o derradeiro e mais relevante momento - que dolorosa sensação! Tal sentimento chega a ser inenarrável, e a língua não possui vocábulos grotescos o suficiente para poder caracterizar tamanha angústia que tomava o coração de Rick. Gradualmente, ele se aproximava do conforto propiciado pela certeza de sua lógica que, até então, havia vencido a ausência de luz. Sua mente visualizava o lugar da calmaria à sua frente. Todavia, tendo vislumbrado sua segurança a uma distância ínfima de suas mãos mortais, uma força o impedia de agarrá-la. Os portões do Paraíso haviam se fechado. Os degraus acabaram. Não havia mais para onde ir.
- O que você sabe sobre espelhos, Richard?
Aquela simples frase, profanada pela voz de Benjamin num tom moribundo e com certo teor de ódio, tomou todo o fôlego de Rick e o paralisou. O som viera detrás dele, e ainda estava tudo escuro. O velho estalou os dedos, e velas se acenderam por todo o aposento. Deveria ser uma espécie de depósito de espelhos antigos e que não tinham espaço na casa. Por onde quer que olhasse, Rick era obrigado a encarar seus reflexos, todos fitando-o de volta, onipresentes. Há quanto tempo não via a si mesmo? Sua aparência estava cansada, endurecida pela vida. Vinte, talvez trinta espelhos jaziam ali, todos apontando para um mesmo ponto: o centro do porão. O espaço era circular, de modo que todo raio de luz, advindo dos pedestais de velas, era canalizado para o mesmo lugar. E, naquele lugar central, iluminado por todas as direções, estava Benjamin. Benjamin? Mas não fora ele quem estava atrás de Rick há segundos? A figura do ancião era nítida, muito embora apenas sua silhueta fosse visível. A lamparina não estava mais em sua mão, e ele estava de pé, virado de costas para o homem.
- Permita-me discorrer um pouco sobre o assunto em questão. - falou ele, desta vez à esquerda do homem. Toda aquela mudança estava fazendo sua consciência espiralar e fugir de seu alcance. - Os espelhos, como nós os conhecemos, são meramente uma cópia daquilo que refletem. É essa a opinião do senso comum. Preciso dizer a verdade, mesmo com essa dor no coração. Richard, alguma vez seus olhos já contemplaram as palavras de Lewis Carroll? Se sim, o que direi ficará mais compreensível. Caso contrário, talvez o simples discurso não seja suficiente. No entanto, você não verá somente a teoria.
Um milésimo de segundo se passou e Liebig não mais estava à esquerda de Rick, mas sim ao fundo do cômodo. Àquela altura, sua aptidão para raciocinar propriamente era nula. Sem alterar sua expressão, ele prosseguiu.
- Como já falei, eu e minha esposa éramos colecionadores fervorosos desses mesméricos objetos. Havia um brilho fascinante e indiscernível no refletir do metal. Tal virtude não era inerente à estrutura em si. Era, possivelmente, a impressão que a observação contínua e prolongada criava em nossa mente. Na verdade, Amanda sempre fora mais fervorosa do que eu, nesse aspecto. Frequentemente, eu despertava no meio da noite, pois tinha um sintoma estranho de fome noturna, e ia à cozinha buscar algo para saciar-me. Ao chegar, via minha mulher admirando os espelhos de nossa casa, com os olhos fixos e sem sequer piscar. Aquela minúcia e atração quase obsessivas fizeram-me ponderar sobre ela possuir uma doença mental. Mas nunca fui muito bem informado acerca do assunto, e não tínhamos condição de pagar um especialista. Depois, ela foi atacada pela maldita Morte Vermelha. Maldita! Maldita! Por que não pude ir em seu lugar? Por que tive de testemunhar o sofrimento da única mulher que amei na vida?
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Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nome
PoesíaOs poetas têm um poder: eles imortalizam tudo o que quiserem. No entanto, sua habilidade não tem nenhum efeito no mundo real. Logo, estão todos suscetíveis à morte, ainda que seus cadáveres sobrevivam em suas páginas. No terceiro e último Poesia Div...