Chega a noite. Um dia atarefado, mas o último da semana. O merecido descanso. Fecho a porta gentilmente, pego a chave, tranco. Sob meus pés, quase fugindo ao meu olhar corriqueiro, um pequeno papel. Apanho com curiosidade. Em azul, numa letra cautelosamente escrita, uma pergunta:
"O que é o silêncio?"
Examino o recado por alguns segundos. As curvas da caligrafia pareciam implicar comigo, e o ponto de interrogação era claramente provocativo. Era uma zombaria, quase. Porque a pergunta não tinha uma resposta pronta, e eu fui pego de surpresa. O papel exalava um tolo de ar de superioridade sobre mim. O que diabos dizer sobre aquilo. Senti-me desafiado, então dedico aqui um capítulo sobre o Silêncio.
Queria dizer, de antemão, que é uma honra para mim escrever sobre uma de minhas palavras favoritas. Um dos meus macrotemas prediletos, e por essa razão, há muito o que se dizer sobre o silêncio, ironicamente. Ironia é algo do qual ele está repleto. Para que seja instaurado, muitas vezes é preciso vociferar o substantivo. O que sugere, por esse raciocínio, que um período silencioso tem como precursor um ápice de sonoridade exacerbada. Os paralelismos que podem ser feitos através dessa consideração inicial são de quantidades extraordinárias, e se fosse para listá-los, este texto perderia o propósito, tornando-se uma enfadonha enciclopédia de ideias opostas. A beleza da antítese não está necessariamente nos elementos em si, mas sim no modo em que contrariam uns aos outros; introduz-se aí o ofício do escritor. Demonstrar, da forma que julgar melhor, como isto acontece. Uma narrativa de ideias é, antes de tudo, uma narrativa. Portanto, é o meio pelo qual se faz prender a respiração por meras letras arrumadas de modo a formar uma palavra. E que palavra impactante! "Silêncio".
Mesmo se opondo à sua semântica, sua sonoridade tem um ritmo agradável aos ouvidos. Um leve sibilar no início, e outro ainda mais sutil ao final. Há, de maneira inexplicável para mim, uma ternura simples na pronúncia dessas três sílabas - ternura humilde, apenas quando é falada em tom baixo, prazerosamente verbalizada para o amante, ao pé do ouvido, num delicioso sussurrar. No grito, qualquer doçura se perde, pois a recitação vira imposição, a sugestividade torna-se dominância, e a delicadeza dá lugar à rudeza. Silêncio nas bocas erradas é rispidez; nas certas, é beijo.
O significado não é coisa difícil de se entender: exclua-se todo e qualquer tipo de ruído, delete-se todos os sons que podem ser emitidos, e será feito o silêncio. Ausência de barulho, definem os dicionários. Utilizando-me apenas desse sentido e da lógica, sem usar a poesia a princípio, posso facilmente afirmar com total certeza que não há, para nós, o silêncio. Não o absoluto. Simplesmente porque estamos fadados a ouvir a vida. O indivíduo pode se encarcerar no local mais hermeticamente fechado, com uma acústica tão perfeita que se iguale à ideal. Por mais esforçada que seja a tentativa, e por mais tentativas que sejam, seu experimento louco sempre resultará no fracasso, pois há uma fonte de ruído da qual ele não pode escapar: seu próprio corpo. O som de sua respiração. Pare de respirar, e ainda restará o som dos batimentos cardíacos. Pare o coração, e você por fim vivenciará o silêncio absoluto, que nada mais é que o som inconfundível de uma conhecida criatura: a morte. Os cadáveres são os únicos seres realmente calados e levam os dias absortos em seu complexo de ausências. Porém, mesmo eles não são por inteiros silenciosos. Eventualmente, um estalar de ossos ou os vermes roendo sua carne fazem o seu papel de emissão sonora. E se, por acaso, disserem que a surdez é uma bênção, estarão cometendo um grave erro. Existe uma beleza inata nos sons que nos cercam. Para os músicos, é a alma da vida. Para os pintores, a indicação de qual seria a cor mais adequada para representar um sentimento. Para os poetas, a palavra mais agradável de se recitar. O foco aqui, contudo, é a falta e não a presença.
É no silêncio onde se pode tomar doses cavalares de individualidade. Quietos e tranquilos, mergulhamos no mundo das ideias. Os pensamentos cavalgam livres pelo gramado da consciência, sem serem incomodados
por nada nem por ninguém. A paz interior prevalece, e o exterior é esquecido momentaneamente. A individualidade, entretanto, traz consigo uma companheira nada amigável: a solidão. Nesses momentos, a vulnerabilidade e a sensibilidade aumentam consideravelmente, e o estar sozinho, se prolongado continuamente, pode levar ao ser sozinho. Nomes para definir a experiência do pensar silencioso incluem: contemplação, admiração, reflexão; também estão aqui solidão, melancolia, monólogo; não há divisão entre os dois conjuntos, ambos vêm ligados inseparavelmente.Entre um par de seres humanos, estabelecem-se duas formas diferentes de silêncio. Particularmente, creio que a mudança de fato está nas pessoas, e não no silêncio, mas fiz essa distinção para ilustrar melhor o que quero dizer. A primeira espécie é de natureza desagradável, para dizer o mínimo. Instala-se em horas de instabilidade. Rompe a linearidade do diálogo, deixa frases descontínuas, desconexas e irritantemente espaçadas. É constrangedor e vergonhoso, por não saber o que falar - ou se se deve acrescentar algo na conversa. Sua calmaria é de fachada, porque por dentro, um caos infernal e uma torrente de pensamentos de cunho hipotético e distópico tomam conta da mente das pobres pessoas. Ansiosos por uma continuação, aqueles que caem neste silêncio estão condenados a uma espera dolorosa e aparentemente infinita.
O segundo tipo é o irmão gêmero do primeiro, exceto pelo fato de ser totalmente diferente. Sua semelhança reside apenas no nome e na definição, pois os dois manifestam sensações completamente opostas. Aqui, no lugar do desconforto, um extremo bem-estar preenche a alma. É de enorme intimidade partilhar essa falta de ruído com outra pessoa, porque isso significa que as palavras são insuficientes para traduzir a conexão espiritual entre ambas as pessoas. Não há outra maneira de expressar tanta empatia senão pela simples permanência silenciosa e profunda. Neste caso, trocam ideias os olhos, papeiam as mãos entrelaçadas. Meios de comunicação mais eficazes, por transmitirem a mensagem nua, que não precisa moldar-se a conceitos de palavras para virem ao mundo. Seja num beijo calmo, com o lento roçar de lábios molhados; num abraço de afetividade genuína; no cochilar de respiração conjunta. Este é, sem dúvida, o silêncio mais amável, e pode ser até melhor que a própria conversa. O silêncio é a poesia da falta.
Aliás, o barulho pode se relacionar com o silêncio de forma peculiar, em dois casos: na sua quebra e em sua composição. Quando se quebra o silêncio, a palavra a ser dita para este fim é escolhida a dedo, principalmente quando se está no constrangimento citado anteriormente. Afinal, é de suma importância para a retomada do diálogo. Eu, como pessoa solitária e frequentemente desacompanhado de ruídos, não apostaria minhas fichas nessa teoria. Isto porque o conteúdo dito, na reconexão, é precariamente absorvido, posto que estamos embebidos na individualidade e, logo, distantes do mundo real. Digo, então, que a palavra em si importa menos que a própria quebra do silêncio. Quanto à composição, o comportamento é contraintuitivo, porém empírico: alguns tipos de barulho, na verdade, contribuem para a manutenção daquilo que gosto de chamar de "silêncio psicológico". Por exemplo, o som das ondas quebrando, o de cabelos sendo massageados por um cafuné, o respingar de uma chuva fraca na janela. Diz-se que tais sons fazem parte do silêncio, pois para o indivíduo, eles ajudam-no em sua evasão do mundo.
Algumas horas na bancada foram suficientes para que eu pudesse formular uma resposta àquele bilhete que encontrei sob a porta de casa. É óbvio que não vou, de maneira alguma, respondê-lo. Ainda que eu utilizasse um milhão de palavras, seria incapaz de traduzir com total exatidão o que é o silêncio, já que ele consiste, substancialmente, na falta delas. Ele é mais uma daquelas palavras cuja explicação se dá melhor pelo sentimento. A melhor maneira de conhecer o silêncio como ele realmente é continua sendo permanecer sem dizer absolutamente nada.
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Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nome
PoetryOs poetas têm um poder: eles imortalizam tudo o que quiserem. No entanto, sua habilidade não tem nenhum efeito no mundo real. Logo, estão todos suscetíveis à morte, ainda que seus cadáveres sobrevivam em suas páginas. No terceiro e último Poesia Div...