Charles e a terça-feira

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Ele abriu o segundo maço de cigarros daquele dia. Retirou um e o levou à boca. Era uma marca de sabor detestável, mas ainda mais detestável era ele, então não havia problema algum em tudo aquilo. Charles - esse era seu nome - tragava seu desjejum temperado a nicotina. Eram apenas nove e meia e ele já pensava no horário em que conseguiria dormir. Os remédios prescritos para combater sua insônia já lhe pareciam fracos demais, possivelmente ele teria de aumentar a dose mais uma vez. Não estava preocupado em consultar o Dr. Manson, a vida lhe ensinara que é preciso resolver as coisas sozinho. Era assim desde o fatídico setenta e dois. De lá para cá, os trinta anos subsequentes apenas cresceram sua barba e suas rugas. Ele já havia passado da idade de mudar, como costumava dizer com seu sorriso cinquentão e as sobrancelhas grisalhas. Certas frases nunca deixam a alma de alguém.

Aquela era uma terça-feira sem graça, como qualquer outra terça-feira também era. Charles, pelo menos, estava de recesso do trabalho. Ainda assim, planejava faltar mais uns dois dias depois que a folga acabasse. Não havia muitos motivos para ir trabalhar. Não havia muitos motivos para fazer várias coisas que fazia, também. Mas ele as fazia mesmo assim. Se existe um Deus, para Charles ele era o acaso. Sua existência sem propósito era mais que uma verdade em sua concepção. Cada fio branco que levava em sua cabeça - e já não era muitos, por sinal - confirmava-lhe a todo momento a falta de razão na vida. E em viver, por conseguinte. Contudo, Charles já reconheceu que uma quarta-feira sempre sucede uma terça-feira. Ele não era mais o fumante de vinte e três anos de cabelo ondulado e amante de literatura. Aquela época fora mesmo intensa, mas agora era difícil encontrar um sentido para aqueles anos de loucuras noturnas e ilegais. Era o tipo de cara que gostava de tatuagens. Tinha interesse, particularmente, nos significados que podiam ter para quem as possuía. Um tempo depois, encontrou sua tatuagem favorita e aplicou em si mesmo: seu niilismo.

Entre as curvas nebulosas de fumaça que o cercavam naquele dia à toa em pleno meio de semana, Charles apreciava com desdém as memórias de seu passado desproposital. Ele não reparava, mas já estava no terceiro cigarro do maço recém-aberto. A testa suada não franzia, só aproveitava os pingos de suor para se refrescar. Estava um calor dos infernos, aquele verão. Mesmo que não quisesse, tinha de continuar vivendo. O tempo de cometer delinquências e agir como sentimental foi embora antes mesmo que pudesse perceber ou sequer sentir algum gosto de emoção. Todos os anos desde então eram só um grande desgosto, uma chateação total. Charles não conseguia mais enxergar o preto ou o branco: tudo agora nada era além de um tom monótono de cinza. E o próprio Charles também nada era além de um tom monótono de cinza. Entretanto, ele não podia se importar menos com isso. Buscar uma resposta para qualquer coisa àquela altura era imbecilidade e egoísmo. Os únicos que se opunham à essa opinião eram seu pulmões regados a Marlboro e sua tuberculose terminal. Mas os remédios, como sempre, os calavam e tudo ficava sob controle.

Charles estava na metade do quinto cigarro quando parou porque já tinha ficado chato fumar. Jogou o resto do maço no lixo. Aquela marca era mesmo um horror, talvez o mercado da rua Marion tivesse uma porcaria melhor. Ele iria lá mais tarde. Por enquanto, ficou observando, de sua janela, as nuvens trazerem chuva e viu todos correndo para suas casas e abrindo seus guarda-chuvas. Estava aí uma coisa boa daquela terça-feira, afinal.


Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nomeOnde histórias criam vida. Descubra agora