Existe uma pequena parte dos meus dias
que reservo, quase como uma obrigação para se viver,
bem curta:
não passa de um punhado de segundos - ou minutos, em dias de sorte,
da mais irrestrita liberdade de pensamento
e tenho o privilégio de caminhar, sobre uma cama ou recostado em um canto qualquer,
pelos corredores da própria mente
e explorar o mundo das memórias das quais me faço esquecer
na rotina sufocante dos dias úteisTais dias têm sido fantasias
de requintado sabor
e de sabor tão requintado
que merecem uma participação nobre
naquilo que talvez seja o único talento nutrido por mim;Entre as memórias, cito pequenos sorrisos
de delicadeza e malícia
e de sublime significado
conectados de maneira paradoxal, eu sei
mas de inseparável relação
não ultrapassam, porém, o sorriso de genuíno contentamento
com sua singular gargalhada convidativa
que qualquer bom espírito jamais se recusaria
a não quebrar sua seriedadeCastanho-escuros eram os olhos
que já fitaram com intenso fulgor
os meus
a princípio, amedrontados por tão desinibida naturalidade
e selvageria nas horas vagas
mas de sentimentalismo escarrado e explícito
como a cor preta num céu de meia-noite
que chega a intimidar os menos sensíveis;
eu, no entanto, não me encaixo nessa definição
ao que mergulhei naquele par de olhosE concluo, ainda nadando naqueles mares:
majestosa é sua beleza! e o é de tal modo
que o próprio Gonçalves Dias
certo dia foi se embriagar, frustrado consigo mesmo
e quando um senhor lhe perguntou por quê
respondeu que não conseguia pensar em palavras que aproximassem a poesia perto o suficiente
dos olhos em questão
(eu também faria um péssimo trabalho se tentasse)O relevo desprezível das impressões digitais
das pontas dos meus dedos
sentiam os negros fios de cabelo
e tocavam, afagavam, embaraçavam-se
e o inebriante aroma de sua presença invadia-me o olfato
expulsava-me a sobriedade do corpo
e levava a alma para um pequeno cômodo
de imensurável bem-estarUm pássaro voava, procurando seus companheiros
não muitas bicicletas passavam pelas ruazinhas
e, lá dentro, dormíamos
inspiração, pausa; expiração, pausa;
e o maestro conduzia a sinfonia
dos sons pulmonares
com perfeição e harmonia
eu podia sentir
a sua etérea existência
fundir-se à minha
nesses momentos de individualidade compartilhadaO tempo não passava, aparentemente
mas o mundo das aparências é uma ilusão
e nenhum de nós pôde perceber
que o tempo passava
e essa é a parte mais desagradável da históriaAinda que o beijo continuasse sendo um beijo
e as bocas que diziam coisas bonitas continuassem dizendo coisas bonitas
e os corações ainda batessem em contraponto
e as mãos afundassem na pele e no abstracionismo de um abraçoO tempo passou.
Mas o tempo não impediu um apogeu
E no apogeu
um beijo foi um beijo
e as bocas disseram coisas bonitas
e os corações bateram em contraponto
e as mãos afundaram na pele e no abstracionismo do abraço
e tudo foi um.e, com isso, selou-se o destino final
que é, como tudo foi uma parábola
o inevitável declínio
e com que tamanha velocidade!
não pude sequer enxergar os sonhos se esvaindo da realidade
ou os grãos de futuro escorrendo de minhas mãos sujasDesde então
tenho superado qualquer outro viajante
que se vanglorie por ter feito uma longa jornada em pouco tempo
ao que eu simplesmente respondo
que fiz a inacreditável travessia
do paraíso ao inferno em uma noite.
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Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nome
PoetryOs poetas têm um poder: eles imortalizam tudo o que quiserem. No entanto, sua habilidade não tem nenhum efeito no mundo real. Logo, estão todos suscetíveis à morte, ainda que seus cadáveres sobrevivam em suas páginas. No terceiro e último Poesia Div...