aquelas leituras cruéis das duas da manhã

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existe certo risco
embora muitos optem por ignorá-lo
em amar aqueles que escrevem
especialmente pela surpresa
ao ler a si mesmo no papel

é uma sensação estranha, entende?
é uma espécie de primeira terceira pessoa
apesar de nos identificarmos com personagens
aqueles feitos sob medida para nós
deixam aquela marca essencial e forte
só quem sente sabe

maior que o risco
em amar um escritor
é o amor entre poetas
e esse é um perigosíssimo sentimento literário
pois eleva o amor ao etéreo reino
da poesia
os poemas tornam-se cartas
através de um diálogo subliminar
escondido laboriosamente
entre as rimas e estrofes
entre as metáforas e os versos brancos
brancos
brancos como a pele da amada
e fazemos tão bem que os leitores
mal desconfiam da paixão nossa

mas que vício doentio é a poesia!
escrevo mais e mais, em busca das respostas
nos versos indefinidos de minha poetisa correspondente
leio suas palavras - ah! - a racionalidade me escapa
sou um refém do sentimentalismo
um tolo que acredita no folclore do amor

pois as palavras
os sublimes clamores silenciosos da noite
elas têm um poder enorme
sobre qualquer poeta;
e as tuas palavras
tuas palavras são tudo
tudo menos decifráveis
pois a cada sílaba lida
nasce uma nova e sutilíssima nuance

e esta é a fonte do temor
de se amar uma escritora
cada uma dessas nuances tem livre acesso
à minha alma
e elas a ferem.
fazem-na sangrar e sentir o desespero moderno
da euforia emocional da dúvida

o líquido que é o sentimento
eu tento colocá-lo
num copo
mas é muito líquido para pouco copo
e logo transborda
lá se vai meu sonhado controle
só me resta vê-lo escorrer pelas mãos
enquanto a ansiedade fulminante
de mais uma paixão fracassada
brinca feliz no meu coração

eu sobrevivo
a este eterno purgatório
de efemeridade afetiva
eu sobrevivo
a esta alternância infinita
entre amor e dor
entre os beijos ao alvorescer
e as lágrimas sob o luar
a tudo isso eu sobrevivo
com não sei que finalidade, porque
o amor que eu causo
já não é mais útil
está obsoleto e fadado ao
esquecimento

eu
eu tenho meus verbos
intransitivos e inconjugáveis
que sonham pelo complemento
inalcançável

a mim, cabe apenas ler
a poesia daquela mulher
aquelas leituras cruéis
das duas da manhã.

Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nomeOnde histórias criam vida. Descubra agora