Ele tocava o piano e ela era atriz. Eram um casal de artistas. Os cargos, na verdade, não importavam, podendo variar infinitamente: uma dançarina e um cantor; um escritor e uma pintora; dois poetas, talvez. O fato é que me intrigou aquilo que, para alguns, não passava de algo secundário, complementar ao enredo. Já eu o considerava um elemento principal daquela trama, o de mais relevância na construção do relacionamento dos jovens. Não que outros fatores não fossem importantes. É que era algo com o qual podia e me identificava. A poesia, que, àquela altura, já havia se tornado parte intrínseca de mim, sendo insolúvel e inseparável do meu ser, era algo extremamente explicitado naquelas duas pessoas. Era encantador, fascinante e ao mesmo tempo misterioso observar como conciliavam seus intensos pensamentos e modos de vida com a rotina diária. De fato, há certa dificuldade em manter o que chamo de relação monopoética, que é quando apenas um dos lados possui esse afloramento do interior da alma - coisa nem sempre proveitosa, para aqueles que estão vendo ou querendo ver somente o lado bom da história. Mas isso é outro assunto, e tenho convicção de que o abordarei em outra oportunidade.
Para o caso da reciprocidade da poesia, é uma situação mais delicada. Porque aqui estamos lidando com extremos; mentes que podem ser bastante peculiares em meio a determinadas circunstâncias. O que muitos de nós sofremos é o interminável descontrole sobre a própria cabeça e o que ela faz. Isto é comum nos tempos de hoje, e é ainda mais agravado em quem tem uma sensibilidade mais elevada que o normal. Pessoas com essa característica sentem coisas das quais gostariam com força de se livrar, não por serem coisas erradas, mas por serem coisas demais. Se é possível levar alguém à loucura apenas pelo excessivo consumo de informação (por sinal, muitas delas propositalmente desnecessárias), imagine o que lhe pode acontecer caso seja submetido a uma overdose de sentimentos, que são simplesmente a base psicológica do ser humano, juntamente com o desenvolvimento da razão. Tal pessoa, exposta a níveis astronômicos de emoções, apresentaria diversos efeitos hiperbólicos: um desejo por prazer sexual vorazmente insaciável e incontrolável; uma tristeza devastadora e inconsolável; um ódio mortífero por um indivíduo ou um grupo deles. Esses efeitos poderiam, se manipulados, levar às ações mais absurdas, e não são esdrúxulos ou incomuns os exemplos que darei: o desejo pelo prazer poderia levar ao estupro ou à pedofilia; a tristeza, ao suicídio; o ódio, ao assassinato ou genocídio (vide anos 1940 e seus contos de terror). Eis que, justamente por isso, fomos condicionados, para o bem maior, a não exagerar nas doses emocionais no dia a dia. Dessa forma, só perpetramos ações realmente emotivas e libertamo-nos ao passar da porta e chegarmos em nossas casas.
Esta foi uma pequena introdução, escrita com o intuito de opôr-se ao casal do filme em questão, que era um perfeito contraponto, ou seja, duas melodias sobrepostas harmoniosamente. Por viverem o viés artístico em suas respectivas profissões, era normal que se dessem ao luxo de exalarem o aroma característico dos sentimentos na pressa do dia ocupado de ambos. Era, sem dúvida, seu perfume favorito, devido ao inegável fato de ele ser a fragância mais natural e genuína que poderiam usar. O problema é que, ao passo em que isso era um diferencial positivo, também trazia desvantagens, que foram brevemente explicadas no parágrafo anterior.
Munidos de quantidades grandes de carga sentimental e poética, tinham entre si uma forte conexão empática e espiritual. Apesar disso, não era, por vezes, fácil a tarefa de balancear a força de sua emoção com a força da emoção do outro. E a emoção, que costuma levar, em seu grau mais elevado, à precipitação e à imaturidade, os fez cometer equívocos verbais e psicológicos, nos quais o aprofundamento é irrisório. Ações que apenas descarregaram suas pesadas cargas acumuladas e não lhes trouxera bem algum, mas sim um previsível afastamento. O pior dos afastamentos é aquele que se faz quando a afeição e o amor recíprocos são escancaradamente visíveis, mas por infortúnio do acaso - força maligna ou benigna, a depender de seu humor -, tornavam-se irreconciliáveis com as decisões tomadas por seus cérebros e executadas por seus dedos em riste, apontando para o lado externo da porta de casa. Há muito, realmente, por que se condenar os sentimentos. No entanto, é paradoxal não atribuir culpa às mentes, por certas atitudes dignas das mais tolas crianças.
O filme foi prosseguindo, narrando o desenrolar da história do casal artista. Eu não pude conter minhas lágrimas num dos momentos que eu, seguramente, mais chorei em público na minha vida. A causa principal para tanto foi minha óbvia identificação com a situação representada. Ainda mais plausível é minha segunda teoria para explicar o fenômeno: a de que você estava logo ali, ao meu lado. Eu não tive chance de evitar que isso acontecesse, já que não tinha nenhuma expectativa sobre o filme. Quando me dei conta do inesperado e do caráter do conteúdo, aquele sentimento já havia se proliferado em mim como um vírus. A reação foi inevitável. Portanto, não posso considerar como um erro meu, mas sim obra do acaso - ele mais uma vez! Não satisfeito em separar o casal protagonista, não contribuiu para que eu mantivesse inalterada minha expressão externa; isso também se deve ao fato de eu me encaixar no grupo dos mais sensíveis.
Os créditos corriam pela tela há alguns minutos, enquanto eu, enxugando o rosto e tentando não chamar muita atenção, pensava na mensagem passada pelo filme: nem tudo acontece como vemos no cinema. Não era a melhor frase que eu poderia ouvir naquele momento, mas foi a frase que me foi dada. Quantos aos fatos posteriores ao fim da sessão, foram todos, exceto um, ocorridos dentro de mim. Foi uma experiência tão interessante e tocante que hoje me faz redigir um capítulo inteiro apenas para narrá-la. Foi, também, uma forte chacoalhada em mente, pondo nela uma linda interrogação. Mais uma para a lista.
Se não perceberam a ironia, eu odeio interrogações.
Conto o meu depoimento para a Lua e as estrelas, em busca de respostas que sei que estão dentro de mim. Esse é o fator torturante do meu questionamento.
Minha ânsia em saber o que está por vir é grande. Mas reconheço e aceito que só terei essa informação quando for a minha hora - pela segunda vez, quem sabe - de atuar naquele filme que vimos juntos.
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Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nome
PoesíaOs poetas têm um poder: eles imortalizam tudo o que quiserem. No entanto, sua habilidade não tem nenhum efeito no mundo real. Logo, estão todos suscetíveis à morte, ainda que seus cadáveres sobrevivam em suas páginas. No terceiro e último Poesia Div...