Estava eu em mais um dia normal
fazendo minha caminhada matinal
nos campos da punição do inferno, a minha nova casa
as manhãs constituem as únicas horas boas do dia por lá
e, como de costume, estava irremediavelmente sozinho
as pessoas de lá não eram nada gentis comigo
odeiam gente novaO castigo que a mim fora designado
não se tratava de dor física, exatamente
eu pequei pelo pensamento e pelo pensamento seria torturado
e todos os dias às duas da tarde, pontualmente
mandavam-me um pequeno demônio
para intensificar a negatividade da minha menteEra doloroso pensar
o tempo em que eu relembrava o passado por prazer
transformara-se num terrível automutilar
e as perguntas
as malditas perguntas!
por quê? como? será? se? quando?
não saíam da cabeça, e eu chacoalhava, e batia contra a parede, e gritava
elas continuavam lá, grudadas, contaminando a sanidade
eu chorava, me arrependia, pedia clemência à primeira criatura que passava por perto
e me olhavam com sincera indiferençaÀs dez, eu era assassinado com uma faca
uma faca invisível e mais poderosa que qualquer outra lâmina
cujo corte faz sangrar a alma
e jorrar desespero
após isso, o demônio se despedia de mim, cordialmente
desejando uma boa noite e prometendo chegar às duas no outro dia, sem atrasos
e eu ia dormir
para acordar o mais cedo possível e caminhar
e esquecer do dia anterior e do resto do dia correnteFoi numa dessas peregrinações, aliás,
que em minha amarga frustração e resignação inexistente
ousei enviar uma mensagem à superfície
pedi uma simples rosa, que, em linguagem simbólica,
era minha carta de alforria daquele horrível lugarEu esperei pacientemente
não vou dizer que sofri como um condenado
porque sofri o que deveria ter sofrido
e julgo justa, até hoje, a punição que recebi
pude, por um curto momento, experimentar um novo gosto
o da aceitação e do conformismo
notas desse sabor estavam se familiarizando com a minha língua
até um dia crucialQuando acordei numa segunda-feira
a caminho de mais uma caminhada
e me deparei repentinamente com algumas pétalas vermelhas ao chão
que você tinha enviado
eu chorei.
a pequena nota anexada, dizendo que eu estava agora livre para sair dali
naquela sua caligrafia bonita
encheu-me de vontade
saí da minha casa
e atravessei o inferno em busca de minha liberdadePor fim, aos pés do próprio Lúcifer,
que me olhava desdenhoso de seu trono de crânios
ergui a rosa aos céus, triunfante, fazendo-o bramir de cólera
os portões me foram abertos, mas nem tudo eram flores;
tive antes de me desvencilhar das cabeças de Cérbero
o que me concedeu um sofrimento final
e o pior de todos entre os que me submeti em minha estadaAo final daquela longa jornada e do ainda mais longo período de intempéries
a primeira coisa que recebi foi um abraço seu
eu soube naquele exato instante, com extrema e inabalável convicção
que as portas do inferno jamais haveriam de abrir novamente para mime que o Diabo sofra com a minha falta!
pois sofri igualmente com a falta de pessoas e olhos e mãos e vidas alheias
uma vida, em particular
e a partir daquele momento
eu vi e senti: tudo estava definido, afinal.
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Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nome
PoetryOs poetas têm um poder: eles imortalizam tudo o que quiserem. No entanto, sua habilidade não tem nenhum efeito no mundo real. Logo, estão todos suscetíveis à morte, ainda que seus cadáveres sobrevivam em suas páginas. No terceiro e último Poesia Div...