O enantiomorfo, pt. 1

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Já era a terceira vez que o número da companhia de seguros de Rick não atendia. Ele havia perdido a paciência e tornado a pôr a cabeça no volante, cansado. Minutos antes, dirigia tranquilamente pela estrada solitária. Já era tarde e sua viagem passava das cinco horas de duração. Estava sonolento, não viu o animal na pista, desviou abruptamente e acabou perdendo o controle do veículo. Outro carro estava no sentido contrário e os dois colidiram, fazendo um estrago no carro de Rick suficiente para que ele não pudesse mais dirigir. O homem do outro automóvel foi até ele e, felizmente, não houve nenhum conflito. Disse que acidentes aconteciam e não se importava em permanecer com ele até o guincho chegar, posto que aquele horário era bastante perigoso. Apresentou-se como Benjamin von Liebig. Era um velho enrugado, cuja idade devia girar em torno dos setenta. Seus olhos eram fundos e cheios de expressão - uma expressão muito proeminente e intensa. Ainda lhe restava cabelo grisalho, os fios iam até metade do pescoço e eram lisos como seda. Ele tinha um modo de falar estranho: seu diálogo era acompanhado de ligeiros movimentos com a cabeça, quase animalescos. Suas mãos não paravam, estavam sempre se movimentando em direções aleatórias e, quando repousavam, tremiam. Algumas vezes, revirava os olhos e endireitava seu maxilar. Fora sua aparência nada convencional, seu tom de voz era amigável e ele parecia ser uma pessoa muito bondosa.

- O senhor ainda não me disse seu nome. - falou Benjamin.

- Richard Price.

- Muito prazer em conhecê-lo, Richard. É uma pena que esse acidente tenha acontecido, mas eu tenho uma solução. Minha casa não fica muito distante daqui e eu tenho tudo que você precisa para consertar.

- Tudo bem, eu espero aqui.

- Não é bom ficar sozinho nesta estrada a esta hora da noite. Venha comigo.

- Hm. - ele parou para pensar sobre a oferta. Um desconhecido estranhamente benevolente ou uma pista deserta. - Ok, vou com você.

Ambos caminharam em silêncio até a casa de Liebig. Ficava escondida entre as árvores, embora fosse bem próxima da rodovia na qual o acidente ocorreu. Era pequena e simples. Quando o velho pegou o chaveiro para abrir a porta, derrubou-o no chão e, à primeira vista, ele parecia ter sumido. Rick jurou ter visto ele chorando e rangendo os dentes. Ele, então, decidiu ajudá-lo, e logo encontrou o objeto. Benjamin falou um pouco sobre seu problema de visão e sobre os óculos que tinha esquecido dentro de casa. Por fim, entraram. Uma residência humilde, mas confortável. Mesmo assim, era possível ver o débil estado em que ela se encontrava. Os cantos das paredes estavam rachados, a tinta descascava e alguns móveis estavam quebrados. O homem não devia ter muita renda. Os centros industriais ficavam a vários quilômetros dali e, a julgar pelo carro que possuía, provavelmente não trabalhava lá. Talvez fosse da área da agricultura familiar, o que explicaria sua condição financeira. Ele foi até a mesa de jantar e puxou uma cadeira para si. Ela estalou, mas não quebrou.

- Já pego minhas ferramentas, Richard. - disse ele. - Só preciso de um pouco de ar. Não costumo andar tanto assim. Enquanto isso, sinta-se em casa. Gostaria de uma água?

- Não, obrigado.

Rick caminhava pela sala, enquanto o velho descansava de cabeça baixa. Seus olhos viram um porta-retratos num criado-mudo. Era Benjamin, muitas décadas mais novo. Seu rosto expirava juventude e felicidade. Ao lado dele, estava uma moça com um vestido branco. Era o quadro de casamento. Ela era muito bonita: as sardas nas bochechas eram a cereja do bolo de sua mocidade. Seu cabelo de um vívido alaranjado era mais curto que o de seu esposo e muito bem arrumado. Os olhos eram azul-escuros e tão felizes quanto os do homem. Ela tinha olheiras e uma cicatriz no ombro esquerdo. Atrás deles, estava a mesma casa, muito mais colorida e conservada. Ver aquela fotografia alegrou Rick de um jeito que não pôde compreender, mas logo em seguida o deixou pensativo. O que havia acontecido?

- Ah, essa foto. - Liebig levantou sua cabeça e notou a observação de sua visita. - O nome dela era Amanda. Linda, não? Eu a amava muito, doce Amanda. - os olhos baixaram, de repente, para olhar sem afinco os retalhos da mesa de madeira. No mesmo momento, tornou a olhar para Rick e suspirou com animação. - Bem, agora estou melhor. Vamos buscar suas coisas, Richard. Siga-me.

Passaram por uma das três portas da sala de estar, entrando num corredor estreito e iluminado apenas por velas. Benjamin comentou que as lâmpadas daquela parte da casa haviam quebrado meses atrás e ele não tinha dinheiro suficiente para repô-las. Falou ainda que, se Amanda estivesse ali, adoraria a ambientação com as velas. Rick não se atreveu a perguntar sobre ela, apenas assentiu e permaneceu calado. Enquanto caminhavam, ele viu uma inúmera quantidade de espelhos, dos mais variados tamanhos e formatos. Todos eram muito belos e ricamente decorados com detalhes nas molduras.

- Você gosta bastante de espelhos, não é?

- Sim. Amanda e eu éramos colecionadores fanáticos de espelhos. Nós os comprávamos aos montes. Naquela época, tínhamos condições de fazer esse tipo de coisa, e eles não são exatamente baratos. - ele se deixou vagar pelas memórias. A amarela e trêmula iluminação cheirava a juventude e tinha o sabor da vivacidade. Ela o instigava a reabrir seu álbum de fotografias internas. - Eu poderia vendê-los e reformar a casa. Mas os mantenho aí. Não são mais espelhos, somente. São também minhas lembranças do passado. Eu, particularmente, prefiro os espelhos circulares.

- Entendo. São muito bonitos mesmo, senhor Liebig.

- Obrigado. Se quiser, você pode... ah! Chegamos! Um segundo, sr. Price, vou acender a lamparina e depois nós descemos.

- Descer?

- Sim. As coisas estão no porão.

Enquanto Benjamin examinava os compartimentos de um móvel ao fim do corredor, um breve e gélido suspiro - quiçá um suspiro do Além! - chegou aos ouvidos de Richard. Tal som produziu, em sua mente já propensa a devaneios, uma fortíssima impressão de inquietude. Talvez fossem as condições do ambiente mexendo com sua percepção, mas de fato o barulho havia sido real. Seus olhos procuraram com meticulosa atenção toda a área visível e, após cansativa análise, nada encontraram. Restringiu-se, por fim, a crer no caráter meramente imaginário daquele ruído. Não menos perturbado por ter chegado àquela conclusão, voltou-se mais uma vez para o velho. Ele, acendendo sua lamparina, apontou em direção a uma região da parede. Um contorno bastante fino, porém bem delimitado, revelava a existência de uma entrada escondida. A iluminação pendia dos dedos enrugados, vibrando com a instabilidade das mãos anciãs. Ele liderou o caminho, pisando sem hesitação nos degraus de madeira que rangiam assustadoramente. Daquele momento até a chegada dos dois homens no cômodo, as únicas palavras ditas foram:

- Não me perca de vista, sr. Price. - falou Liebig, num tom soturno. - No entanto, mais importante que isso: não se perca de vista.

Poesia Diversa 3: memórias de um poeta sem nomeOnde histórias criam vida. Descubra agora