Capítulo 2

166 41 23
                                    

No dia seguinte pela manhã, mandei um "oi" para minha tia via whatsapp. E como previsto, logo o celular vibrou em minha mão, anunciando uma chamada.

Atendi, e ela perguntou sobre como havia sido o primeiro dia de aula. Como não era fã de detalhes — e nem os tinha —, logo entrou num longo monólogo, me atualizando sobre tudo o que passava em sua vida, ainda que houvesse menos de cinco dias desde a última vez que nos comunicamos. No geral, apenas desabafava sobre seu trabalho e seus filhos, enquanto eu me encarregava de fazer pequenos comentários quando necessário.

Roberta era dona de um dos corações mais gentis que tive a oportunidade de conhecer. Extremamente atrapalhada, característica que a colocava em situações um tanto quanto constrangedoras para a sua infelicidade. Para as pessoas a sua volta, por outro lado, era uma dádiva observar suas trapalhadas.

Contudo, se enganava quem pensava que sua personalidade excêntrica era sinônima de falta de profissionalismo. Era uma advogada brilhante, considerada uma das melhores em sua cidade. Havia quem dissesse que ao colocar o pé no tribunal, com seu terninho e salto agulha, assumia uma postura irreconhecível e não poupava seu adversário. Além de estar sempre empenhada em ajudar aqueles que sentia ter uma boa alma. Mesmo quando o cliente não possuía muita renda para lhe pagar. Uma qualidade que está em falta no curso de advocacia.

Quando ela pausou a conversa, e o silêncio pairou na linha, olhei para o bloco de papel em meu colo com o objetivo de lembrar o que poderia falar. Antes de retornar as ligações de Roberta sempre anotava um ou dois tópicos para o momento em que ela pararia de falar. Poderia simplesmente desligar. Seria um alívio, contudo sabia que ela ainda não estava pronta para finalizar a ligação e esperava que eu desse qualquer sinal de interesse. No final, fazia um esforço porque a amava e aqueles instantes serviam como uma aula de fisioterapia.

Pedi que avisasse Gabriel para verificar o celular. Ao contrário de mim, meu primo não era adepto a tecnologia. Preferia que os contatos se dessem no cara a cara. Então, não era surpresa quando uma mensagem que enviara três dias atrás nem ao menos indicava sinal de ter chegado ao aparelho.

Roberta comentou algo sobre resistência do filho a tecnologias e em seguida emendou em um assunto sobre como era estranho ficar sem eletricidade nos dias atuais.

Apesar de não ser meu único primo, Gabriel era o único com o qual me sentia próxima. Embora o garoto possuísse um espírito mais livre que o meu, quando colocados lado a lado tínhamos uma personalidade parecida. Jamais consegui nutrir por Cecília o mesmo carinho.

Sendo sincera, ela nunca foi uma criança muito agradável. Desde pequena me sentia bloqueada em criar qualquer laço com a menina. Enquanto qualquer outro humano desenhava corações, flores, casinhas ou a natureza no jardim da infância, Cecília tinha uma bizarra obsessão em desenhar animais mortos com o sangue jorrando. E quando não havia nenhuma mancha vermelha em sua folha e a professora vinha elogiar seu "lindo bichinho dormindo", ela deixava claro que não se tratava de sonhos, mas sim que ele morrera por desnutrição. Já disse o quão creepy isso era, certo?

Quando ia nos visitar sempre quebrava vasos da casa, rabiscava as paredes, picotava roupas. No início, todos achavam que eram apenas pequenas travessuras da infância. Quer dizer, tem muitas crianças com o espírito de Dennis, o pimentinha, vagando pelo mundo, certo? As destruições e os desenhos pararam, mas foram substituídos por uma língua afiada e um sorriso maligno que me dava frio nas espinhas. De certa forma, ela gostava de ter o controle sobre o outro. Você sabia isso porque cada ato era acompanhado de um olhar sagaz, como se ela premeditasse cada reação da outra pessoa.

Jamais entenderei como um ser humano tão maravilhoso como tia foi capaz de trazer ao mundo uma peste como Cecília. Talvez fossem os genes do Ricardo, o ex-marido de Roberta. Vá saber!

— Mas o importante é que ele tá precisando de ajuda. E disse que logo lhe chamará para uma conversa. ­— Neste momento meu cérebro despertou. Não fazia a menor ideia sobre que rumo a conversa tinha tomado e, por consequência, não sabia o que deveria responder. Quem diabos era "ele"? Por que precisaria se comunicar comigo?

— Desculpa, tava preparando um sanduíche. Tô morrendo de fome e me desconcentrei. Do que falava mesmo? — Menti na cara pau. Esperava que não fosse pra o inferno por isso!

— Sobre o emprego. Mamãe contou-me que você estava cogitando começar sua vida de assalariada agora que tem 18 anos. Então lembrei que tenho esse colega. Não nos vemos há um bom tempo, afinal estados diferentes... Você sabe. Porém ainda mantemos contato. E há poucos dias, me contou que a esposa está para entrar de licença à maternidade. Seria uma contratação temporária. Caso queria, eu posso pedir-lhe que marque uma entrevista pra você. Aparentemente, é um serviço simples, não precisa de muita experiência para se adaptar.

De súbito, senti meu estômago revirar. Aquilo me pegou de surpresa. Era certo que cogitava a possibilidade de procurar um emprego. Mas era apenas isso, possibilidades. Algo que não pensava por mais de vinte minutos por dia. Na verdade, nem mesmo recordava de ter comentado sobre isso com minha avó.

— Lara? Ouviu? – Balbuciei um "Aham" e em seguida ela prosseguiu. — Tá bom, depois você me dá uma resposta. Avise para dona Matilde que mais tarde falo com ela. Já estou mega atrasada para o trabalho. Pelo visto, mais uma vez, terei que engolir qualquer coisa, enquanto dirijo. Por que sou assim? Nunca consigo tomar um café da manhã decente! — Ouvi um leve suspiro do outro lado da linha e pude imaginá-la batucando os dedos enquanto refletia. Para logo depois se despedir.

Embora fosse inesperado, não seria de todo ruim. Seria estúpido negar uma entrevista —  principalmente quando experiência não era exigida — apenas por prever um recusa. A mudança de cidade implicava em fazer um esforço maior para negar os meus pessimismos. E se dissesse um "não" naquele momento, significaria que tinha retrocedido tudo o que construí em alguns anos de terapia.

Esfreguei as palmas das mãos na calça, secando o suor que aparecera. E me concentrei na parede branca a minha frente, analisando quantas marcas havia ali e inventando uma história de seus antigos moradores. Evitei pensar sobre o que sucederia aquele momento, forçando meu cérebro a desvendar se aquele quarto pertencera a uma criança ou a um adulto. 

_____________________________________

Nota da Autora:

Mais um capítulo fresquinho para vocês!

Não gostei muito desse, mas acho que o próximo está bem melhor.

Digam-me se estão gostando da história, da personagem, da narrativa ou apenas dêem uma estrelinha!

Beijos e até a próxima quarta ;*

Apenas Respire [FINALIZADA]Onde histórias criam vida. Descubra agora