A garoa

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   Ainda não havia passado das oito horas da noite, porém o mercado começava a se preparar para fechar. A chuva sempre diminuía o movimento na pequena mercearia, mas, naquele dia em especial, o aguaceiro durara mais do que o comum para uma tempestade de verão. O tempo invernal não animava ninguém a sair de casa; até mesmo Alex, que trabalhava naquele mercadinho de beira de avenida a mais de dois anos, sentia-se indisposto a continuar ali. Só o fazia porque seus avós, donos do estabelecimento, precisavam e mereciam sua ajuda para tocar o negócio.

   A mercearia não era grande, apenas um negócio de família, porém era levada com bastante rigor por seus avós. Não podia ser diferente, afinal ali estavam todas as suas economias e o sustento da família. Seu avô, principalmente, amava aquele lugar como se sua vida dependesse de seu sucesso. E, aos poucos, o senhor ia alcançando seu objetivo; nos dois anos de história do estabelecimento, Alex presenciara uma evolução admirável na quantidade de clientes, que se tornaram fiéis a medida que o bairro, ainda novo e repleto de terrenos baldios, desenvolvia-se. Ver o empenho com que seu avô trabalhava era motivador; para o senhor de mais de sessenta anos, o tempo sempre estava bom.

   Porém não era a realidade naquele dia. O movimento havia sido baixíssimo e Alex já estava repondo as bebidas e iogurtes no freezer, como fazia todo fim de expediente.

   — Já tá terminando? — O garoto ouviu seu avô perguntar entre as prateleiras do local, quase gritando. Era um hábito do velhote gritar; falava alto na tentativa de suprir sua audição deficiente.

   — Tô quase! — Alex respondeu, com a cabeça enfiada dentro do freezer, enquanto organizava as fileiras mais distantes de produtos. Se fosse em uma das noites quentes, tão comuns na capital, aquele momento estaria sendo prazeroso, pois o freezer era o único ar fresco dentro do mercado sem ar condicionado. Mas naquela noite fria, o ar gelado do aparelho só servia para congelar as pontas de seus dedos e aumentar a tremedeira que, vez ou outra, percorria sua pele. Enquanto completava sua última tarefa, o garoto brevilíneo percebeu de soslaio que uma silhueta masculina se aproximava e observava os produtos na prateleira. — Posso ajudar? — perguntou, sem tirar os olhos dos iogurtes que insistiam em não se manterem em pé.

   — Cê nunca disse que sua família era empreendedora… — o rapaz falou, calmo, enquanto mexia nas bolachas em umas das estantes.  

   Alex imediatamente parou, sentindo um arrepio cruzar sua espinha. Não era o frio, e sim o medo por ter reconhecido aquela voz. Olhou para o garoto; não podia acreditar no que via. Estava tudo indo tão bem, tudo em sua normalidade, até então.  

   — O que você tá fazendo aqui? — Alex sentiu o suor frio transpirar por seus poros.

   — O que cê acha, gordinho? — Lucas ironizou. — Viemos te buscar.

   — Eu não quero ir.

   Lucas riu. Os olhos ferozes percorriam o mercado, atentos, sem se deixar focar em nenhum lugar. Pegou um pacote da bolacha recheada na prateleira onde tanto futricava e abriu, sentindo-se em casa.

   — Estamos sendo bonzinhos com você — falou, depois de morder um dos biscoitos. — Tem um carro lá fora, te esperando. Ou cê me acompanha e entra no carro como se nada tivesse acontecendo, ou teremos que entrar aqui e… Bem… Não podemos deixar rastros, né? Seria uma pena que algo acontecesse com seu vovô.

   O loiro de bochechas avantajadas encarou o rapaz musculoso a sua frente. Poderia muito bem lutar de igual para igual com Lucas, sua adaptação permitia que não ficasse em desvantagem, porém não era em sua segurança que devia pensar. Entre aquelas prateleiras havia um homem o qual o Projeto não tinha direito de estragar a vida.

Projeto Gênesis - Exposição Onde histórias criam vida. Descubra agora