Um pai é um tesouro, um irmão é um consolo; um amigo é ambos.
- Benjamin Franklin
- Você é um pe o quê? - questionei, movimentando as sobrancelhas. Com um tom surpreendente de paciência, Jay me explicou.
- Um peculiar. - segredou, sem muita expressividade - Foi um termo que achei num dicionário. Ele acabou se encaixando nos meus padrões e eu o aderi. Fiquei em dúvida entre "espectro", "peculiar" e "anômalo". Preferi a segunda opção.
Que ridículo!, pensei, Se eu pudesse fazer coisas incríveis como ele, não escolheria uma palavra que mal poderia pronunciar. Sem contar que "anômalo" soa bem melhor
- E desde quando... você sabe... - hesitei, envergonhado de isso se tornar uma ferida aberta para ele.- Desde meus 6 anos. Tudo aconteceu quando um bêbado vagabundo lançou uma garrafa de cerveja contra minha testa. - afirmou, sorrindo como se aquilo fosse uma crônica divertida - Ela atravessou, claro. Não tinha ninguém olhando, a não ser o idiota. Ele achou que estava imaginando coisas.
Fiquei sorrindo e pensando na cena toda. Um malandro deitado num banco de rua com os olhos arregalados e totalmente confuso, gritando "Céus, estou louco?"
- Então... - sua voz me sugou de volta para a realidade - Você não pode, de maneira alguma, falar isso para nossos pais, certo?
- E por que não? Podemos te ajudar.
- Porque você prometeu! - uivou nervosamente - Minha anomalia não é como uma doença rara. Eu sou diferente das pessoas, Millard. Se um cientista pusesse as mãos em mim, iria me dissecar. Ou até pior.
- Certo, tudo bem! - rendi, revirando os olhos - Mas não precisa ficar longe da gente. Qual é o problema de você morar aqui? Posso separar um lugar pra pôr sua cama. Nem é tão grande mesmo.
- Essa é a questão. Eu não consigo me controlar. Você viu o que aconteceu com o meu rosto. Se eu tivesse perdido o foco, a faca de Bradley teria atravessado meu estômago!
Talvez fizesse sentido. Talvez ele precisasse ficar sozinho para que os normais não descubram sobre sua anomalia. Talvez eu precisasse ser mais compreensivo. Não é como se eu estivesse perdendo meu irmão para sempre, afinal. Ele só estaria longe de mim. Não é?
As suposições me deixaram embriagado de sono. Bocejei e enterrei minha cabeça no travesseiro mais próximo, arrancando um olhar de desgosto do meu irmão.
- Você é nojento assim mesmo ou alguém te ensinou? - Jay se contorceu, tapando o nariz somente agora - Vá tomar banho e tente tirar esse cheiro imundo. Espero que alguém tenha te dado um perfume de presente, se não estaremos perdidos.
Dei uma risada sarcástica e corri para o banheiro. Ele tinha razão. Um gambá estaria menos fedido do que eu. Atirei as roupas num saco negro e pus no lixo. Não seria legal usar aquelas vestes novamente. Ao terminar o banho e pôr algo mais leve, fui surpreendido por Jason segurando um dos presentes que se encontravam em cima da mesa de jantar da gente.
- Feliz 15 anos, pirralho. - sibilou, entregando-me o embrulho prateado e bagunçando mais ainda meus cabelos molhados - Sei que você amava escrever na caderneta da vovó Truzy, mas receba este presente como uma renovação. Espero que goste.
Retirei todo o papel que o envolvia, mais rápido do que uma criança faria no dia de Natal. Era um caderno de couro! Analisei cada detalhe que o ornamentava. As páginas amareladas me lembravam de uma época distante. Esse foi o melhor presente que eu poderia ganhar de alguém.
- Tem uma dedicatória lá embaixo. - Jason apontou para o lugar que se referia. Meus olhos correram até a caligrafia cuidadosamente trabalhada.
Para o pequeno explorador que existe dentro de você. Que suas aventuras possam ser relatadas em cada folha deste caderno - isso se todas couberem aqui.
Com carinho,
Jason G. NullingsUma lágrima de felicidade se formou em meus olhos, mas não permiti que saísse. Não gostava de chorar, mesmo que os motivos fossem admiráveis.
- Nem acredito que fez isso por mim. - sussurrei, esbanjando um sorriso desengonçado - Obrigado.
- Sem problemas. Tudo para meu irmãozinho. - riu ele - Sinto muito pelo que aconteceu com você no colégio. Amanhã falo com seus professores.
- Não precisa. Não quero parecer um bebê chorão. - era verdade. Se Jason fosse me defender, a diretora iria exigir uma conversa séria com nossos pais. Não quero que saibam que eu sou humilhado na escola. Eu sempre fui. Por que só falar agora? - Se não se importar, vou dormir. Estou morrendo de sono.
- Claro que não me importo. Vou me despedir das visitas. Se precisar de mim, estarei em casa, é só me procurar. - lembrou, antes de destrancar a porta e sair do quarto - Tenha bons sonhos.
Mal sabia eu que a última parte não iria se concretizar.
≈
Eu estava numa sala escura e repleta de espelhos. Eram todos de diferentes tamanhos. Alguns me representavam normalmente; outros, com o quadril mais largo. Vi alguns que me faziam ter uma cabeça tão grande que mal cabia no espelho. Eu olhava para todos os lugares, procurando por uma saída, mas eram tantos reflexos que me deixavam estonteado.
Cada vez que eu dava passos para frente, porém, minha imagem se embaçava em cada espelho. Quando eu corria, as coisas só pioravam. Inicialmente, meus membros foram sumindo. Depois, meu tronco e por fim, a cabeça. Ao chegar no maior espelho da saleta, eu não via mais meu reflexo. Era como se estivesse se escondendo de mim em algum lugar.
Como se eu não existisse mais.
Acordei num súbito, as gotas de suor faziam-se presentes em minha testa. Agradeci por eu estar no meu quarto, por aquilo não passar de um pesadelo idiota. Os motivos para isso pareciam claros demais: eu devo ter ficado traumatizado. Era tanta pressão sobre mim que eu gostaria apenas de desaparecer na escola. Procurei pelo primeiro espelho do lugar e suspirei ao notar que eu estava intacto.
Saí do quarto e desci as escadas, que faziam ruídos agonizantes a cada passo que eu dava. Eram 3 da manhã, não podia acordar meus pais. Fui até a cozinha, desejando tomar um copo de leite e esquecer que algum dia isso aconteceu. Não era tão simples como eu imaginava. Como eu iria esquecer de tamanha humilhação? As pessoas tinham algum truque? Como elas faziam?
Deslizei minhas mãos na botija que estava dentro da geladeira, pretendendo levar um copo de leite para o quarto. Antes disso, olhei para os meus pés. Ou o que deveria ser deles - algo tinha chamado minha atenção.
Eu não conseguia vê-los! Pisquei os olhos várias vezes, até notar que não passava de uma ilusão.
"Calma, Millard. Foi só um pesadelo. Não deixe que ele o consuma", repeti para mim mesmo.
Subi as escadas e me abracei ao caderno que ganhei de Jay. As folhas envelhecidas tinham um cheiro surpreendente de canela e mel, como o perfume que vovô usava. Procurei por uma caneta, beberiquei o leite e arrisquei algumas notas. Infelizmente, a última coisa que eu lembro foi de ter adormecido antes de terminar meus rabiscos e de um pensamento que me intrigou:
E se não fosse apenas um sonho?
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MIRROR ;; millard n. ( ✓ )
Fanfiction⠀˗ˏˋ⠀𝐌𝐈𝐑𝐑𝐎𝐑⠀ˎˊ˗ ⠀⠀⠀EU JÁ FUI UM garoto normal, certa vez, mas faz tanto tempo que às vezes é difícil de recordar aquela época catastrófica. Ora, a quem estou enganando... lembrar da minha juventude era algo que me trazia dor. Essa era a única...