Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.
- Martin Luther King
Fevereiro, 1937
9 meses. Esse foi o tempo do meu isolamento na casa de Jason. O tempo da minha "morte", porém, foi de aproximadamente 13 meses. Eu, antes, tinha amor pelo meu irmão, uma admiração tremenda, que mal podia representar em palavras. Agora tudo isso teria ido embora como as ondas que batem contra as rochas deterioradas de uma falésia.
Ano passado, Jason teve a terrível ideia de forjar a minha morte. Como eu viveria com ele sem contato com o mundo exterior, eu deveria simplesmente desaparecer, assim como meus pés, naquela estranha manhã de 1936. De acordo com suas venenosas palavras, eu teria levado um tiro de um homem desconhecido e meu corpo, jogado no rio mais próximo da cidade. Mamãe entrou em desespero quando recebeu a falsa notícia por meu irmão. Papai decidiu organizar, em vão, uma busca pelo meu corpo, para fazer um enterro adequado. Pena que nunca souberam da verdade. Pena que eu nunca tive a oportunidade de me despedir propriamente deles.
Quando soube de tanto desespero que causei, meu coração apertou. Tive crises de ansiedade que só cessaram após uma semana, mas era o que aparentava ser certo. Jason sempre me atulhava com as mesmas justificativas, pensando que seria fácil esquecer do acordo que fizemos. Por outro lado, eu não queria ser rejeitado por meus próprios pais por eu ser o que eu sou, uma aberração. Essa era a razão que me tornava mais compassivo.
Infelizmente, houve uma "pequena" falha no plano. Cassie, após meses de visita à casa de Jay, insistindo em saber mais sobre meu paradeiro, acabou descobrindo a farsa. Ela me viu quando eu saí do quarto para tomar café. O único jeito foi obrigá-la a permanecer em silêncio - mesmo depois de eu ter levado vários tapas por magoá-la daquela forma. Mas agora estamos namorando às escondidas. É melhor do que nada. Jason não poderia saber, senão nos daríamos mal.
- Pensando na vida, irmãozinho? - Jason rompeu o que restava do silêncio no porão. Seu jeito de andar despreocupado fazia meus dentes rangerem de raiva. Era tudo culpa dele! Eu não estaria aqui se tivesse escutado toda sua ladainha de me esconder do mundo.
O rubor se alastrava pelo meu rosto, quase que desaparecido. A escuridão, porém, camuflou qualquer expressão de revolta.
- Por que você não vai à merda? - ralhei, meus punhos já estavam doendo de tanto esforço ao cerrá-los. Jay tomou passos para frente, tão cuidadoso quanto um leopardo. Ele não parecia estar triste ou feliz. Pior. Ele estava neutro.
- Isso não é algo adequado de se dizer, Mill. - retrucou ele, ajeitando a manta que cobria o que já havia desaparecido do meu corpo, ou seja, do quadril para baixo. A única coisa que não deixava minhas pernas completamente invisíveis era a minha calça. Todas as noites, eu calculava e anotava o quanto de mim sumia. Infelizmente, notei uma certa irregularidade por duas ou três vezes. Mas, conforme minhas estimativas, eu não poderia nunca mais ver meu reflexo daqui a uns cinco dias.
- Acha que me importo com o que pensa?
Jason fitou os próprios pés, emitindo um assobio desajeitado. Papai era mestre nisso e o ensinou quando Jay era apenas um moleque. Mas meu irmão nunca foi um bom aprendiz.
- Enfim... não estou aqui para arranjar confusões - "Diga isso 13 meses atrás para todos que você enganou", pensei, um sorriso torto se moldou em meus lábios secos. Jason fez uma careta tão frustrada que, por um momento, achei que ele tivesse lido minha mente - Preciso sair por hoje, vou resolver uns negócios pendentes com uns amigos.
- Deixe-me adivinhar. Você quer que eu fique aqui, morfando como um livro esquecido, até que as traças me devorem? - sugeri, arqueando as sobrancelhas com um sorriso cínico no rosto.
- Eu diria algo menos poético ou menos Millard, mas se prefere assim... E não tente nenhuma gracinha. Vou deixar seguranças soltos pela casa. Se você tentar fugir, eles irão te trazer de volta pra cá. Ah! E lembre-se: você não é completamente invisível.
- Que comovente, Sherlock. - bufei. Ele saiu da minha vista e fechou a porta com brutalidade, deixando-me sozinho, assim como antes.
Escolhi ler um livro, enquanto isso. Por mais tentadora que fosse a ideia de escapar e irritar meu irmão, eu não tinha capacidade. Como ele disse, não sou completamente invisível, o que poderia ser um empecilho em algumas situações.
Uma rajada de vento, unida a uns barulhos de pedras batendo contra o vidro, me interromperam. Dei o trabalho de me erguer e procurar a origem dos ruídos que se formavam naquela noite fria. Ao forçar minha vista para enxergar através da janela de vidro do porão, consegui encarar o rosto de uma assustada e cansada Cassie Valentine. Corri para perto dela.
- Cassie, o que faz a-
Ela atrapalhou meus pensamentos com um beijo suave. Só nos soltamos quando lembrei que ela precisaria se esconder. Puxei seus braços para perto de mim e a ajudei a abrir a janela para que pudesse entrar. Mesmo com dificuldades, a garota conseguiu.
- Cassie, você tem que sair daqui. - adverti, soando exausto - Jason me deixou sozinho com um grupo idiota de seguranças. Se um deles te pegar...
- Isso não vai acontecer, amor. Eu te prometo. - sorriu. Me admirava o fato de ela tentar me alegrar desse jeito. Ela tinha esse dom que a tornava especial para mim - Mas de uma coisa eu sei. Nós temos que sair daqui. É só seguirmos pela janela.
- Não acho uma boa ideia.
- E por que não? - assim que perguntou, eu a puxei até o lugar mencionado. Ao olharmos minunciosamente pelo lado de fora da janela, encontramos dois grandalhões carregados de pés de cabra. Eles devem ter notado o barulho de Cassie e foram checar.
- Oh... estamos ferrados. - sussurrou ela.
- É, estamos ferrados.
Passaram-se alguns minutos e ela andava de um lado para outro, pensativa. Eu já tinha coberto meus braços com a manta, revelando meus pés descalços e desaparecidos. Não faria diferença naquele momento, Cassie já sabia do meu segredo. Mas o que achei estranho foi quando ela olhou para mim pela terceira ou quarta vez. Pareceu-me que tinha uma ideia.
- Já sei como escaparemos! Mas vai ter que confiar em mim. - sua voz ficou um pouco mais grossa, talvez fosse o medo e a ansiedade falando por ela, mas ignorei.
- E quando eu não confiaria em você? - ela deixou a pergunta no ar por um tempo incerto. A única resposta que obtive foi quando seus olhos me percorreram de cima a baixo, parando, principalmente, nos meus pés.
- Acredite - disse misteriosamente -, não sei se você vai gostar disso. De qualquer forma, preciso que você se esforce para que tudo dê certo. Tudo bem?
- Tudo bem. - murmurei, a desconfiança navegando pelo meu corpo como um barquinho numa violenta tempestade.
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MIRROR ;; millard n. ( ✓ )
Fanfiction⠀˗ˏˋ⠀𝐌𝐈𝐑𝐑𝐎𝐑⠀ˎˊ˗ ⠀⠀⠀EU JÁ FUI UM garoto normal, certa vez, mas faz tanto tempo que às vezes é difícil de recordar aquela época catastrófica. Ora, a quem estou enganando... lembrar da minha juventude era algo que me trazia dor. Essa era a única...