A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo.
- Hermann Hesse
- Alma! - exclamou o estranho que revelou ser o irmão de srta. Peregrine - Que visita formidável!
O homem abriu os braços para enlaçá-los em nossa mentora, mas ela o afastou com um gesto com as mãos e baixou a cabeça. Como se quisesse respeitar a privacidade da mulher, "Myron" recuou, desmanchando o sorriso que antes fazia presença em seu rosto. Para se recompor, deu uma tossida e fingiu ajeitar uma gravata invisível, erguendo por fim o queixo.
- Presumo que você não veio aqui à visitas. - declarou, forçando terrivelmente um sotaque inglês. Enoch deve ter se sentido ofendido, o garoto vivia falando do seu país como um fanático nacionalista - A que devo as honras, pequena Alma?
Nossa mentora voltou a olhar no fundo dos seus olhos, com extrema relutância. Parecia que dentro de si havia uma guerra e eu entendia o porquê. Alma deveria começar esbofetando Myron, um dos responsáveis pela grandiosa catástrofe do mundo peculiar, ou demonstrar cortesia com o homem que sempre chamou de irmão?
- Vim por causa de Caul. - srta. Peregrine esclareceu, ajustando os óculos ao meio do nariz - Ele roubou algo que nos pertence.
- Se quer mesmo saber, não estou mancomunado a ele. - Myron falou tão rápido que precisei de alguns segundos para processar a mensagem - Caul me traiu uma vez. Estou certo de que aquele bastardo não me trairá novamente.
"Duvido muito" pensei "Vocês não devem ser tão diferentes um do outro"
- Não viemos para tratar de negócios de família, senhores. - Horace brandou, retirando a cartola de sua cabeça em sinal de respeito - Nossa amiga foi sequestrada por Caul e estamos tentando recuperá-la. Será que poderia nos ajudar?
Myron fixou os olhos num ponto do chão e depois encarou o homem raquítico, que aparentava ser seu mordomo pessoal. A troca de olhares acirrada me fez sentir um vazio agonizante, como se eu estivesse perdido numa sala escura. O irmão de Alma nos olhou com condolência e finalmente falou algo.
- Adoraria ajudá-los, mas duvido que isso será possível. - os olhos de Myron anularam qualquer sensação de esperança e revelaram um tom sombrio que ele deveria estar escondendo desde que chegamos - Quando Jack põe as mãos em algo, dificilmente será recuperado.
- Então nos ajude a tornar isso possível! - instiguei, cansado até mesmo de ficar em pé - Ela é importante para mi... para nós. Por favor.
Myron revirou os olhos, mas hesitou. Seu mordomo, Nim, ficou revoltado e tentava mudar a cabeça de seu senhor, sem chegar perto de conseguir, felizmente. O sr. Bentham nos convidou a entrar em seus aposentos e fez uma breve explicação do por quê não mantinha "Peregrine" como sobrenome da família. "As ymbrynes possuem sobrenomes em concordância com suas respectivas aves" dizia ele "Como eu não sou capaz de me transformar em uma, mantenho 'Bentham', orgulhosamente, como apelido". Ao avançarmos para o próximo cômodo, nos deparamos com uma figura ainda mais perturbadora que o próprio lugar. Um homem estupidamente alto estava em pé, próximo a uma lareira. Ao notar nossa presença, ele virou para nos encarar.
- Que maravilha! - ele repudiou com uma voz dominante - O que sua casa virou agora, sr. Bentham, um orfanato?
Ao dizer aquela palavra, estremeci. Não só pelo medo que eu tinha ao encará-lo, mas por lembrar que estávamos num local totalmente desconhecido e repugnante.
- Sharon, seja mais educado. - Myron exigiu, obrigando-se a erguer a cabeça para olhar os dois pontos circulares e brilhantes que se escondiam debaixo de metros quadrados da capa negra do semi-gigante - Estes são meus convidados.
- Se eu for mais cordial, me daria um pouco de ambrosia? - a pergunta pairou pelo ar, srta. Peregrine nos puxou para perto à menção da tal "ambrosia".
- Você está em fase de tratamento, Sharon. Será impossível conceder seu pedido.
Mesmo ainda navegando nas dúvidas, seguimos até um sofá enorme que se dispunha na sala. Nim tratou de servir-nos chocolate quente e chá para srta. Peregrine. Horace tirava um cochilo, enquanto Olive e Claire brincavam de fazer bigodes com a espuma do chocolate, suas risadas ecoavam pelo cômodo, o que me fez sentir um pouco culpado. Ficaríamos mais alguns dias aqui, organizando formas de resgatá-la. Não deveríamos estar focando em procurar Cassie?
- Ei, Millard. - Alex se aproximou de mim, encostando uma de suas afiadíssimas penas em minha pele. Levei um susto - Vamos encontrá-la.
Assenti com a cabeça, apesar de a minha desconfiança me abalar por completo. Observei Myron, enquanto ele pegava um livro verde fino e todo empoeirado.
- O que é isso? - Richard questionou, chegando mais perto do homem. Myron usou todo o ar que tinha nos pulmões para soprar as partículas do exemplar envelhecido.
- Esta é a edição especial dos Contos Peculiares. É a última mantida comigo. - respondeu ele, com um ar de astúcia. Já tinha ouvido falar daquele livro. Ele possuia uma coletânea de incríveis histórias peculiares, que um dia desejava contribuir com os meus próprios contos - É a única edição que possui a história dos ukrastis.
- Poderia compartilhar conosco? - pediu srta. Peregrine -Seria essencial para nós.
Myron assentiu e procurou um assento acochoado. Nim correu para atender o pedido de seu mestre. O sr. Bentham pigarreou e procurou pela página dos ukrastis. Ao encontrá-la, começou a ler.
- "Há anos, uma espécie majestosa de peculiares habitava a Terra, eles eram peculiares até para os peculiares e habitavam o extremo sul da Croácia. Seu nome era ukrasti, derivado do croata, 'aquele que rouba'. Eles eram capazes de sugar a essência que formava um ser peculiar, transferindo suas respectivas habilidades para seu usuário. Eram tão poderosos que chegaram a ser conhecidos como Reis Peculiares."
- Wow! - Emma suspirou - Incrível.
- Nem tanto. - Myron falou, esclarecendo sua resposta com mais trechos do livro - "Muitas pessoas, tomadas pela ambição e pelo poder, mataram os ukrastis para conseguir seus talentos, mas nunca alguém tinha sido sucessível ao ponto de conseguir. Havia um esquema apropriado para extrair as propriedades peculiares da alma de um ukrasti e ninguém o obedeceu, até tempo atrás, quando um homem finalmente dominou a forma correta de fazê-lo. Boris Merlin*, um homem ganancioso e sem medo, finalmente conseguiu roubar a peculiaridade de um ukrasti, mas ele tinha algo em especial. Ele era um metamorfo, capaz de se transformar numa ave de rapina pequena, mas forte. Passou anos de sua vida pesquisando maneiras de obter sucesso, sacrificando diversos ukrastis para alcançar seu objetivo doentio. A última ukrasti da época foi o alvo de seu êxito, mas infelizmente foi morta. Foi assim que as pessoas descobriram a fórmula secreta para ter a peculiaridade de um ukrasti: apenas metamorfos capazes de transformar em ave, incluindo as ymbrynes, poderiam fazer isso."
- Faz sentido... - sussurrei para mim mesmo, chamando a atenção de duas ou três pessoas - Caul é um metamorfo. Ele é mais do que capaz de fazer isso com Cassie. Ele vai roubar a essência peculiar dela!
- E tem mais. - falou Myron, após fechar o livro - Vocês não podem perder tempo.
- Ah, que novidade! - Alex murmurou, sarcasticamente - Acho que já sabíamos disso. Tem algum motivo em especial, pelo menos?
- Sim. - sua voz engrossou. Encolhi o pescoço, esperando pelas más notícias - Para Caul roubar a peculiaridade de Cassie...
- Ele terá que matá-la. - Srta. Peregrine completou, cruzando os braços.
n/a:
* Merlin: Esmerilhão
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MIRROR ;; millard n. ( ✓ )
Fanfiction⠀˗ˏˋ⠀𝐌𝐈𝐑𝐑𝐎𝐑⠀ˎˊ˗ ⠀⠀⠀EU JÁ FUI UM garoto normal, certa vez, mas faz tanto tempo que às vezes é difícil de recordar aquela época catastrófica. Ora, a quem estou enganando... lembrar da minha juventude era algo que me trazia dor. Essa era a única...