10. OS DONS DE CASSIE

313 27 50
                                    

As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade.

- Victor Hugo

Os dias foram se passando com lentidão e eu fui obrigado a viver com o fato de eu ter desaparecido completamente. Passei algumas tardes isolado de todos, mesmo na hora das refeições. Dessa vez era eu quem não havia se acostumado com a pútrida realidade. Cassie, Alex e até alguns dos peculiares me visitavam de vez em quando, obrigando-me a comer pelo menos um pedaço de pão. Por vezes eu recusava, apesar de estar mais magro do que antes. Não suportava o fato de ter que usar roupas para ficar visível.

- Não pode se enfurnar nesse quarto, Mill. - Cassie sussurrou em meu ouvido, depois de ficar por 18 minutos me fazendo companhia junto a Alexander - Você não está se ajudando, amor.

Pus minha testa encostada nos joelhos, sentindo o ar quente da minha respiração que se voltava contra mim. Ouvi um ruído que decidi não ligar, até que Alex se pronunciou.

- O que é isso? Não sabia que garotos americanos tinham diários. Nós, egípcios, costumamos seguir uma antiga tradição semelhante a anotar coisas num pedaço de papel. Só que em nosso caso, usávamos tecido e tinta. - o garoto alado falou com um sorriso deformado, apontando para uma das velhas páginas da minha caderneta. Algo me diz que ele sentia saudades de casa - Quem é Jason?

- Não é da sua conta. Largue isso! - exclamei, erguendo-me do chão quase sem ser percebido. Quando me arrisquei em roubar o caderno dele, fui detido por uma das suas asas.

- Ah, então ele sabe falar! - provocou - Quem é ele?

- Não é da sua conta!

- Millard! - Cassie repreendeu, pendurando as mãos na cintura - Esse não é você! Jason é o irmão dele, Alex.

- Não, aquela coisa não é meu irmão. - cerrei o punho, feliz por eles não verem meu rosto. Forcei para não chorar na menção de alguém que eu considerava meu melhor amigo. Era cruel pensar nele como meu inimigo agora, mas eu não tinha escolha. Não depois de tudo o que Jason fez para me "proteger".

Eles não sabiam o que falar. Incrível como eu conseguia deixar tudo mais mórbido. Cassie segurou minha mão e pôs um cachecol ao redor do meu pescoço.

- Ponha algumas peças de roupa. - ela ordenou - Estamos indo para o jardim.

Mesmo sem ânimo, peguei meu casaco e forcei um sorriso. As coisas poderiam piorar se eu não fosse.

. . .

O vento frio batia contra minhas costas, sussurrando em meu ouvido coisas que talvez eu gostaria de ouvir, se eu o compreendesse. Os arrepios surgiam repentinamente. Agradeci internamente por Cassie ter me obrigado a levar roupas para fora de casa. Meus dentes já estavam rangendo.

Perto de mim estava Cassie e meu tão querido caderno. Parte de mim queria jogá-lo fora, mas outra parte, a mais lúcida, me dizia para guardá-lo. Era uma das poucas lembranças que tinha de um pedaço da minha família, do meu verdadeiro lar. Fui atrapalhado por uma pequenina pedra, que fora lançada contra minha cabeça.

- Desculpe, sr. Nullings! - gritou Bronwyn, fazendo uma breve mesura, como se fosse necessário - Pretendia atirá-la em Victor, mas ele se esquivou.

Os irmãos trocavam olhares sérios, Bronwyn deixou a língua para fora da boca. Depois de milésimos, ambos caíram na gargalhada. Como se eu fosse afetado pela sensação de alegria, decidi ceder um pouco e rir com os dois.

- Que bom que se sente melhor, Mill. - Cassie declarou, segurando a minha mão. Alex estava ao seu lado, coletando flores de diferentes espécimes para dar à nossa mentora.

MIRROR ;; millard n. ( ✓ )Onde histórias criam vida. Descubra agora