À hora determinada vieram os dois, padrinho e afilhado, buscar D. Maria e sua família,
segundo haviam tratado: era pouco depois de ave-maria, e já se encontrava pelas ruas grande
multidão de famílias, de ranchos de pessoas que se dirigiam uns para o Campo e outros para a Lapa,
onde, como é sabido, também se festejava o Divino. Leonardo caminhava parecendo
completamente alheio ao que se passava em roda dele; tropeçava e abalroava nos que encontrava;
uma idéia única roía-lhe o miolo; se lhe perguntassem que idéia era essa, talvez mesmo o não
soubesse dizer. Chegaram enfim mais depressa do que supusera o barbeiro, porque o Leonardo
parecia naquela noite ter asas nos pés, tão rapidamente caminhara e obrigara o padrinho a caminhar
com ele.
D. Maria estava já pronta e os esperava com algumas outras pessoas com quem também
tratara ir de companhia, e em um momento puseram-se a caminho. Formavam todos um grande
rancho acompanhado por não pequeno número de negras e negrinhas escravas e crias de D. Maria,
que levavam cestos com comida e esteiras. D. Maria deu o braço ao compadre, e o mesmo fizeram
as outras senhoras aos demais cavalheiros. Por gracejo D. Maria fez com que o Leonardo desse o
braço a sua sobrinha; ele aceitou a incumbência com gosto, mas não sem ficar alguma coisa
atrapalhado, e deu na pobre menina alguns encontrões, embaraçado por não saber se lhe daria a
esquerda ou a direita; finalmente acertou, e deu-lhe a esquerda, ficando ele do lado da parede.
Ofereceu-lhe o braço, porém Luisinha (tratemo-la desde já por seu nome) pareceu não entender o
oferecimento ou não dar fé dele. Contentou-se pois o Leonardo em caminhar ao seu lado.
Assim chegaram ao Campo, que estava cheio de gente. Nesse tempo ainda se não usavam as
barracas de bonecos, de sortes, de raridades e de teatros, como hoje: usavam-se apenas algumas que
serviam de casas de pasto. Depois de passarem por diante delas, D. Maria e a sua gente se dirigiram
para o Império. Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento, diante daquele
espetáculo que via pela primeira vez, pois era verdade o que dissera D. Maria: no tempo de seu pai
raras ou nenhumas vezes saía de casa. Assim, sem o saber, parava algumas vezes embasbacada a
olhar para qualquer coisa, e o Leonardo muitas vezes via-se forçado a puxar-lhe pelo braço para
obrigá-la a prosseguir.
Chegaram ao Império, que era nesse tempo quase defronte da igreja de Sant’Ana, no lugar
agora ocupado por uma das extremidades do quartel de Fuzileiros. Todos sabem o que é o Império,
e por isso o não descreveremos. Lá estava na sua cadeira o imperador, que o leitor já viu passeando
pela rua no meio de seus foliões. Luisinha, vendo-o, pôs-se nas pontas dos pés, esticou o pescoço, e
encarou-o por muito tempo estática e absorta. O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê por
dentro contra o menino que atraía a atenção de Luisinha, e passou-lhe pela mente o desejo louco de
voltar atrás seis ou sete anos de sua existência, e ser também imperador do Divino.
Nas escadas do Império fazia-se leilão como ainda hoje, divertindo-se muito o povo ali
apinhado com as graçolas pesadas do pregoeiro. Estiveram aí algum tempo entretidos os nossos
conhecidos, e foram depois procurar no meio do Campo um lugar onde pudessem fazer alto para
cear e ver o fogo. Acharam-no, não sem alguma dificuldade, pois que muitas outras famílias se
haviam adiantado e tomado as melhores posições. Grande parte do Campo estava já coberta
daqueles ranchos sentados em esteiras, ceando, conversando, cantando modinhas ao som de guitarra
e viola. Fazia gosto passear por entre eles, e ouvir aqui a anedota que contava um conviva de bom
gosto, ali a modinha cantada naquele tom apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras
originalidades, apreciar aquele movimento e animação que geralmente reinavam. Era essa a parte
(permitam-nos a expressão) verdadeiramente divertida do divertimento.
Os nossos conhecidos sentaram-se com os outros em roda de suas esteiras, e começaram a
cear. Leonardo, apesar das emoções novas que experimentava desde certo tempo, e principalmente
naquela noite, nem por isso perdeu o apetite, e esqueceu-se por algum tempo de sua companheira
para cuidar unicamente do seu prato. No melhor da ceia foram interrompidos pelo ronco de um
foguete que subia: era o fogo que começava. Luisinha estremeceu, ergueu a cabeça, e pela primeira vez deixou ouvir sua voz, exclamando extasiada ao ver cair as lágrimas inflamadas do foguete que
aclaravam todo o Campo:
— Olhe, olhe, olhe!...
Alguns dos circunstantes desataram a rir; o Leonardo deu o cavaco com aquelas risadas, e as
achou muito fora de tempo. Felizmente Luisinha estava por tal maneira extasiada, que não deu
atenção a coisa alguma, e enquanto duraram os foguetes não tirou os olhos do céu.
Aos foguetes seguiram-se, como sabem os leitores, as rodas. Nessa ocasião o êxtase da
menina passou a frenesi; aplaudia com entusiasmo, erguia o pescoço por cima das cabeças da
multidão, tinha desejos de ter duas ou três varas de comprido para ver tudo a seu gosto. Sem saber
como, unia-se ao Leonardo, firmava-se com as mãos sobre os seus ombros para se poder sustentar
mais tempo nas pontas dos pés, falava-lhe e comunicava-lhe a sua admiração! O contentamento
acabou por familiarizá-la completamente com ele. Quando se atacou a lua, a sua admiração foi tão
grande que, querendo firmar-se nos ombros de Leonardo, deu-lhe quase um abraço pelas costas. O
Leonardo estremeceu por dentro, e pediu ao céu que a lua fosse eterna; virando o rosto, viu sobre
seus ombros aquela cabeça de menina iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia, e ficou
também por sua vez extasiado; pareceu-lhe então o rosto mais lindo que jamais vira, e admirou-se
profundamente de que tivesse podido alguma vez rir-se dela e achá-la feia.
Acabado o fogo, tudo se pôs em andamento, levantaram-se as esteiras, espalhou-se o povo.
D. Maria e sua gente puseram-se também em marcha para casa, guardando a mesma disposição com
que tinham vindo. Desta vez porém Luisinha e Leonardo, não é dizer que vieram de braço, como
este último tinha querido quando foram para o Campo, foram mais adiante do que isso, vieram de
mãos dadas muito familiar e ingenuamente. Este ingenuamente não sabemos se se poderá com
razão aplicar ao Leonardo. Conversaram por todo o caminho como se fossem dois conhecidos
muito antigos, dois irmãos de infância, e tão distraídos iam que passaram à porta da casa sem parar,
e já estavam muito adiante quando os sios de D. Maria os fizeram voltar. A despedida foi alegre
para todos e tristíssima para os dois. Entretanto, como sempre que se despedia, o compadre
prometeu voltar, e isso serviu de algum alívio, especialmente ao Leonardo, que tomara tudo o que
se acabava de passar mais em grosso.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
ClassicsA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...