A custa de muitos trabalhos, de muitas fadigas, e sobretudo de muita paciência, conseguiu o
compadre que o menino freqüentasse a escola durante dois anos e que aprendesse a ler muito mal e
escrever ainda pior. Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma
remessa maior ou menor de bolos; e apesar da fama que gozava o seu pedagogo de muito cruel e
injusto, é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele: o menino tinha a bossa da
desenvoltura, e isto, junto com as vontades que lhe fazia o padrinho, dava em resultado a mais
refinada má-criação que se pode imaginar. Achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo
quanto se lhe ordenava; se se queria que estivesse sério, desatava a rir como um perdido com o
maior gosto do mundo; se se queria que estivesse quieto, parece que uma meia oculta o impelia e
fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do moto-contínuo. Nunca uma
pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias: era tido na escola pelo mais refinado
velhaco; vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor, fosse seu ou alheio, contanto que lhe
caísse nas mãos: um lápis, uma pena, um registo, tudo lhe fazia conta; o dinheiro que apurava
empregava sempre do pior modo que podia. Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola
declarou ao padrinho que já sabia as ruas, e não precisava mais de que ele o acompanhasse; no
primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez uma tremenda gazeta; tomou
depois gosto a esse hábito, e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de
gazeta-mor da escola, o que também queria dizer apanha-bolos-mor. Um dos principais pontos em
que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era a igreja da Sé. O leitor
compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa; na Sé à missa, e mesmo fora
disso, reunia-se gente, sobretudo mulheres de mantilha, de quem tomara particular zanguinha por
causa da semelhança com a madrinha, e é isso o que ele queria, porque internando-se na multidão
dos que entravam e saíam, passava despercebido, e tinha segurança de que o não achariam com
facilidade se o procurassem.
Pelo hábito de freqüentar a igreja tomara conhecimento e travara estreita amizade com um
pequeno sacristão que, digamos de passagem, era tão boa peça como ele; apenas se encontravam
limitavam-se a trocar olhares significativos enquanto o amigo andava ocupado no serviço da igreja;
assim porém que se acabavam as missas, e que saíam as verdadeiras beatas, reuniam-se os dois, e
começavam a contar suas diabruras mais recentes, travando o plano de mil outras novas. Por
complacência, ou antes por prova de decidida amizade, o companheiro confiava ao nosso gazeador
um caniço, e faziam juntos o serviço e as maroteiras: a mais pequena que faziam era irem de altar
em altar escorropichando todas as galhetas, o que lhes incendia mais o desejo de traquinar.
Esta vida durou por muito tempo; porém afinal já eram as gazetas tão repetidas, que o
padrinho se viu forçado a acompanhá-lo outra vez todos os dias para a escola, o que desfez todos os
planos que os dois tinham concertado. O nosso futuro clérigo tinha muitas vezes pensado em como
não lhe seria agradável ver-se revestido como o seu companheiro de uma batina e uma sobrepeliz, e
feito também sacristão, ter a toda hora à sua disposição quantos caniços quisesse, ter por sua e de
seu amigo toda a igreja, poder nos dias de festa, tomando o turíbulo, afogar em ondas de fumaça a
cara da velha que mais perto lhe ficasse na ocasião da missa. Oh! isto era um sonho de venturas!
Vendo-se privado, depois que o padrinho o acompanhava, de gozar parte destes prazeres, como
fazia nos dias de fugida, atearam-se-lhe os desejos, e começou a confessá-los ao padrinho, dando a
entender que nada havia de que agora gostasse tanto como fosse a igreja, para a qual, dizia ele,
parecia ter nascido. Isto foi para o padrinho um alegrão, porque neste gosto recente do pequeno via
furo aos seus projetos.
— Eu bem dizia... pensava consigo; não tem dúvida, vou adiante; o rapaz está-me
enchendo as medidas.
Afinal o menino tomou um dia uma resolução última, e propôs ao padrinho que o fizesse
sacristão.
— Isso seria muito bom, disse ele, a fim de acostumar-me para quando for padre.
A princípio a idéia deslumbrou ao padrinho, porém mais tarde acudiu-lhe a reflexão, e
assentou que seria rebaixar o menino e comprometer a sua dignidade futura. Afinal porém tantas
foram as rogativas e argumentos do pequeno, que se viu obrigado a ceder. O menino tinha nisso
duas enormes vantagens; satisfazia seus desejos e saía da escola, poupando assim as remessas
diárias de bolos.
— Está bem, dissera consigo o padrinho, ele já sabe ler alguma coisa e escrever:
deixo-o, para fazer-lhe a vontade, algum tempo na Sé, para que também tome mais amor àquela
vida, e depois, apenas o vir com o juízo mais assente, hei de ir adiante com a coisa. Foi em
conseqüência procurar aquele sacristão da Sé que dançara o minuete na festa do batizado, que era
nada menos do que o pai do sacristãozinho com que o nosso pequeno travara amizade, para arranjar
o afilhado, que não queria outra igreja que não fosse a Sé. Felizmente pôde ele ser admitido; com a
prática que tivera dos dias de gazeta aprendera pouco mais ou menos todo o cerimonial que é mister
a um sacristão: ajudar a missa já ele sabia, às outras coisas aperfeiçoou-se em pouco tempo.
Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente
batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros
soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém
reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada.
— E que tal?!... Deus vos guarde, Sr. cura, disse fazendo um cumprimento.
O menino lançou-lhe um olhar de revés, e respondeu entre dentes:
— Eu sou cura, e hei de te curar...
Era aquilo uma promessa de vingança.
— Ora dá-se? continuou a vizinha consigo mesma; aquilo na igreja é um pecado!!
Chegou o menino à Sé impando de contente; parecia-lhe a batina um manto real. Por fortuna
houve logo nesse dia dois batizados e um casamento, e ele teve assim ocasião de entrar no pleno
exercício de suas funções, em que começou revestindo-se da maior gravidade deste mundo. No
outro dia porém o negócio começou a mudar de figura, e as brejeiradas começaram.
A primeira foi em uma missa cantada. Coube ao pequeno o ficar com uma tocha, e ao
companheiro o turíbulo ao pé do altar.
Por infelicidade a vizinha do compadre, a quem o menino prometera curar, sem pensar no
que fazia colocou-se perto do altar junto aos dois. Assim que a avistou, o novo sacristão disse
algumas palavras a seu companheiro, dando-lhe de olho para a mulher. Daí a pouco colocaram-se
os dois disfarçadamente em distância conveniente, e de maneira tal, que ela ficasse pouco mais ou
menos com um deles atrás e outro adiante. Começaram então os dois uma obra meritória: enquanto
um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos
de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha
despejava-lhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, olhando
disfarçado para o altar. A pobre mulher exasperou-se, e disse-lhes não sabemos o quê.
— Estamos te curando, respondeu o menino tranqüilamente.
Vendo que não tirava partido, quis a devota mudar de lugar e sair, porém o aperto era tão
grande que o não pôde fazer, e teve de aturar o suplício até o fim. Acabada a festa, dirigiu-se ao
mestre-de-cerimônias, e fez uma enorme queixa, que custou aos dois uma tremenda sarabanda.
Pouco porém se importaram com isso, uma vez que tinham realizado o seu plano.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
ClásicosA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...