Era um sábado de tarde; em casa de D. Maria havia um lufa-lufa imenso; andavam as crias e
mais escravos de dentro para fora; espanava-se a sala; arrumavam-se as cadeiras; corria-se,
falava-se, gritava-se.
A dona da casa trajava, fora do ordinário, um rico vestido de cassa bordado de prata, de
corpinho muito curto e mangas de um volume enorme. Seja dito de passagem que a prata do
bordado estava já mareada, e o mais do vestido um pouco encardido. Trazia ainda D. Maria um
penteado de desmedida altura, um formidável par de rodelas de crisólitas nas orelhas, e dez ou doze
anéis de diversos tamanhos e feitios nos dedos.
Luisinha trajava também um vestido que qualquer menos entendido na matéria desconfiaria
que era filho legítimo do de sua tia; trazia um toucado de plumas brancas na cabeça e um rosário de
ouro de contas mui grossas na cintura.
Acabavam de sair as duas assim preparadas do quarto de vestir, quando sentiu-se rodar uma
carruagem e parar na porta da casa. Luisinha estremeceu; D. Maria levou o lenço aos olhos, e
tirou-o em pouco tempo molhado de lágrimas.
— Está ai a carruagem, gritou uma das crias que estava de sentinela à janela.
A carruagem era um formidável, um monstruoso maquinismo de couro, balançando-se
pesadamente sobre quatro desmesuradas rodas. Não parecia coisa muito nova; e com mais dez anos
de vida poderia muito bem entrar no número dos restos infelizes do terremoto, de que fala o poeta.
Mal tinha este trem parado à porta, sentiu-se o rodar de outro que veio parar junto dele. O
que dissemos a respeito dos vestidos de D. Maria e sua sobrinha pode perfeitamente aplicar-se aos
dois trens; o segundo parecia filho legitimo do primeiro.
Do último que chegara apeou-se José Manuel, e entrou em casa de D. Maria, que o veio
receber à porta.
É inútil observar que a vizinhança estava toda à janela, e via todo aquele movimento com
olhos regalados pela mais desabrida curiosidade.
José Manuel trajava casaca de seda preta, calções da mesma fazenda e cor; trazia meias
também pretas e sapatos de entrada baixa, ornados com enormes fivelas de prata, espadim e chapéu
de pasta.
Acompanhavam-no dois amigos vestidos pelo mesmo teor.
José Manuel estava com um ar entre compungido e triunfante, e desfazia-se em mesuras à
D. Maria.
Depois de tudo isto quer ainda o leitor que lhe declaremos que a sobrinha de D. Maria
casava-se naquela tarde com José Manuel?
Chegou o momento da partida. Luisinha, conduzida por D. Maria, que lhe ia servir de
madrinha, embarcou num dos destroços da arca de Noé, a que chamamos carruagem; José Manuel,
acompanhado por quem lhe ia servir de padrinho, fez outro tanto, e partiram depressa para a igreja.
Fizeram bem em partir depressa, porque se se demorassem alguns minutos, corriam o risco de
serem devorados pelos olhos dos vizinhos.
Apenas cessou a bulha das carruagens, começaram estes últimos em conversa renhida, de
que damos aqui uma pequena amostra.
— Senhora, dizia uma sujeita que morava junto de D. Maria para outra que morava
defronte, o tal noivo poderá ser coisa boa, mas não dou nada pela cara dele.
— E a noiva?... respondia a outra; arrenego também da lambisgóia...
— E o filho do Leonardo ficou vendo estrelas?...
— Por força: venceu este porque é um finório de conta.
— Se a velha deixar tudo à sobrinha, não é mau arranjo...
— Decerto. Pois não sabe que o seu defunto marido era um homem que viajava para
a Índia?
Neste tom continuaram até a volta das carruagens.
Agora demos ao leitor algumas explicações a respeito do triunfo de José Manuel.
Depois das boas obras do mestre-de-reza, de que os leitores já foram informados, José
Manuel reabilitara-se completamente junto a D. Maria; tornara a freqüentar a casa, e foi pouco a
pouco pondo barro à sua parede. Um sucesso inesperado veio ajudá-lo com a maior eficácia. O
testamenteiro do finado irmão de D. Maria, do pai de Luisinha, que já tinha tido com D. Maria,
como talvez não estejam esquecidos os leitores, uma demanda por causa desta última, surdiu de
repente com uma nova prebenda relativa a uma pontinha de testamento, e D. Maria teve de entrar de
novo com ele em uma luta judiciária. Isto coincidiu com a morte inesperada do procurador de D.
Maria. José Manuel ofereceu-se para cuidar da causa; e com tanto jeito arranjou tudo, que em muito
pouco tempo, coisa que procurador nenhum teria feito, venceu a demanda em favor de D. Maria.
Ora, os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D. Maria por uma demandazinha;
atirava-se a ela com vontade, e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão
judiciária, que em tais casos parecia ter em jogo sua vida. Daqui se poderá concluir a satisfação que
teria ela no dia em que se achava vencedora, e como se não julgaria obrigada a quem lhe
proporcionasse a vitória.
José Manuel aproveitou-se disto; e no dia em que veio ler a D. Maria a sentença final que
resolvia a pendência em seu favor, pediu-lhe a mão da sobrinha, a qual lhe foi prometida sem
grandes escrúpulos.
Luisinha estava nesta ocasião em um daqueles períodos de abatimento que se costumam
produzir nos moços, e principalmente nas moças que ainda marcham por aquela estrada florida que
leva dos 13 aos 25 anos, quando as oprime o isolamento.
Ora, como sabem todos os que me lêem, o Leonardo tinha abandonado Luisinha; ela aceitou
portanto indiferentemente a proposta de sua tia.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
ClássicosA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...