Para sossegarmos os leitores, que estarão sem dúvida com cuidado no mestre-de-cerimônias,
apressamo-nos a dizer que não chegou ele a ir à cadeia; o Vidigal quis dar-lhe apenas uma amostra
do pano, e depois de o ter exposto na casa da guarda por algumas horas, como já acontecera ao
Leonardo, à vistoria pública, o deixou ir embora envergonhado, abatido, maldizendo a idéia que
tivera de ir assistir de dentro do quarto à festa dos anos da sua amásia. Quanto ao Leonardo, não
cabia em si de contente; por pouco que a sua vingança não tinha sido completa: vira o seu rival,
como já a ele próprio sucedera, preso pelos granadeiros, levado à casa da guarda, sofrendo aí a
vistoria dos curiosos; faltara, é verdade, a sova e os dias de cadeia, porém também ele era um
simples meirinho, e o mestre-de-cerimônias um sacerdote respeitado, e por isso qualquer coisa
bastava para feri-lo gravemente.
Além disto o mestre-de-cerimônias, depois de graves meditações, sabendo que ficara
malvisto de seus companheiros pelo escândalo que dera, se bem que fosse certo não estar nenhum
deles a tal respeito em circunstâncias de lhe atirar a primeira pedra, ouvindo um murmúrio surdo
que se levantava ameaçando-o com a perda do lugar que exercia na Sé, decidiu-se a abandonar a
cigana, e assim o fez. Com isto o Leonardo deu-se de todo por satisfeito, e renasceram-lhe as
esperanças de conquistar o antigo posto, uma vez que o principal inimigo o tinha abandonado. A
cigana, desprezada, não quereria sem dúvida ficar por muito tempo devoluta; e como ele se achava
com requerimento em caixa, e contava serviços atrasados, era provável que obtivesse favorável
despacho, porque também ela ainda nem sonhava que tudo o que tinha sucedido pudesse ter sido
obra sua.
Começou pois o sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante: se a via na
janela, ora parava na esquina a dirigir-lhe olhares suplicantes; passando por junto dela deixava ora
escapar um magoadíssimo suspiro ou uma queixa amargurada.
Todas estas cenas, desempenhadas por aquela figura do Leonardo, alto, corpulento,
avermelhado, vestido de casaca, calção e chapéu armado, eram tão cômicas, que toda a vizinhança
se divertiu com elas por alguns dias. Alguns imprudentes começaram, conversando das janelas, a
atirar indiretas à cigana; esta picou-se com isso, e foi essa a fortuna do Leonardo. Um dia que ele
passou deu-lhe ela de olho que entrasse.
O Leonardo teve uma sensação inexplicável; seu rosto coloriu-se em todos os tons, desde o
vermelho, que era sua cor habitual, até o roxo enegrecido; depois baixou gradualmente até a palidez
marmórea; caminhando do lugar onde estava até à porta da cigana, não sentiu o solo debaixo de
seus pés; quando deu acordo de si estava com os olhos rasos d’água nos braços da antiga amada que
lhe pedia mil perdões, que prometia ser dali em diante fiel até à morte, se bem que se não esquecia
de declarar no meio de tudo que se o recebia de novo em sua casa era porque queria quebrar a
castanha na boca daquelas más-línguas da vizinhança que se estavam metendo com a sua vida. O
pobre homem não cabia em si; parecia um viajante que volta aos velhos lares, ou um
cabo-de-guerra que acaba de livrar do poder do inimigo uma praça sitiada. Enfim reataram-se de
todo os afrouxados laços.
O Leonardo caiu em dar parte aos seus companheiros que tinha afinal vencido a intrincada
demanda; custou-lhe isto uma tremenda caçoada de todos, e sérias repreensões de alguns. Mas com
coisa alguma se importava naquela ocasião: a felicidade o cegava a ponto de não ver aquilo que lhe
estava entrando pelos olhos.
A comadre, apenas soube do que havia sucedido, foi procurar o Leonardo, e começou em
um longo sermão a querer persuadi-lo que tinha dado um passo errado.
— Pois, compadre, disse-lhe ela, você não se emendou ainda!...
— Qual, história, eu sou doido por estas coisas.
— Mas, homem, você não se tem dado bem nem com as saloias nem com as ciganas;
para que antes não procura uma filha cá da terra?...
A comadre tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia, e que lhe pesava sofrivelmente
sobre as costas; desde há muito nutria por isso uma idéia de que o leitor mais tarde terá
conhecimento quando ela se realizar, ou antes disso, se a perceber pelas palavras da comadre.
— Nada, não gosto desta gente..
— Não tem razão; há por aí muita rapariga capaz; é verdade que o que elas querem é
o toma lá, dá cá debaixo do arco-cruzeiro...
— É por isso mesmo que eu não gosto.
Depois de algumas outras tentativas a comadre retirou-se um pouco contrariada, mas não de
todo desanimada; ela contava com a cigana para ajudá-la a realizar o seu plano, e o leitor verá para
diante que tinha nisso razão.
Quanto ao nosso ex-sacristão, continuava ainda a estar sem destino, o que sobremaneira
incomodava ao compadre, mas que nem por isso o desanimava. Coimbra era a sua idéia fixa, e nada
lha arrancava da cabeça. Até o próprio velho tenente-coronel já lhe tinha ido pessoalmente falar por
solicitações da comadre, porém nada conseguira. Exasperado com essa obstinação deixara o
negócio de parte, e não se importara mais com coisa alguma.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
ClásicosA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...