Quando Vidinha chegou à casa achou ainda toda a família no maior susto e confusão pelo
desatino que ela acabava de praticar: as duas velhas, ao vê-la entrar, lançaram-se-lhe ao pescoço, e
cobriram-na de abraços, de beijos e de lágrimas. Ela estava ainda porém sob a influência das
emoções violentas por que acabava de passar, e não pôde corresponder àquelas provas de amizade;
atirou-se sobre uma banquinha, e levou algum tempo calada, sem dar a menor resposta às mil
perguntas que lhe eram dirigidas. Esse silêncio mais aumentava a ansiedade da família: finalmente
resolveu-se ela a rompê-lo, exclamando:
— Pensavam que o caso havia de ficar assim? enganaram-se... Qual!... eu quero que
fiquem sabendo para quanto presto...
— Então, rapariga, foste fazer alguma asneira...
— Asneira... qual... fiz o que faz qualquer mulher que tem sangue na guelra... E
agora venha ele para cá, que temos ainda contas a ajustar...
— É verdade, e ele que ainda não veio... já tinha tempo de chegar, pois partiu logo
no vosso alcance...
— É verdade... acrescentou Vidinha com certo susto; na tal cova da ucharia não
entrou ele; e quando de lá saí não o vi mais...
— Não lhe vá ter sucedido alguma coisa!... O major o jurou!...
— O major!... repetiram todas com os sinais do mais visível susto.
E levantou-se de novo em casa a confusão, porque, como os leitores terão visto, apesar dos
dissabores que o Leonardo causava àquela família, todos ali, exceto os dois primos rivais,
queriam-lhe muito e muito bem. Falar a qualquer dos dois primos para que o fossem procurar, era
coisa de que ninguém se lembrava, tão certos estavam que eles se haviam recusar. Tiveram pois de
esperar que chegasse da rua o antigo sacristão da Sé para darem as providências precisas.
Os leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem passado em casa da família,
de Vidinha não tenhamos falado nesta última personagem; temo-lo feito de propósito, para dar
assim a entender que em nada disso tem ele tomado parte alguma.
Causa remota e primordial de todos estes acontecimentos, pois foi em conseqüência de sua
amizade que o Leonardo se juntou à família, por muito feliz se tem dado em que não tenham caído
sobre ele inculpações de que com dificuldade se poderia defender; homem de tato, conservara uma
posição absolutamente neutral em todas aquelas lutas. Eis aqui pois qual a causa do nosso silêncio
sobre ele.
Infelizmente naquela noite recolheu-se mais tarde que de costume, e quando chegou já não
era tempo de fazer coisa alguma. Toda a família, passou a noite na maior ansiedade, desvanecidas
de certa hora em diante as esperanças de ver chegar o Leonardo a cada momento. Ninguém
duvidava mais que alguma coisa tivesse sucedido ao Leonardo, e nos quadros medonhos que cada
qual imaginava, a figura do major Vidigal aparecia sempre em primeiro plano; ninguém também
duvidava que no quer que fosse que houvesse sucedido ao Leonardo, o major teria por força parte
ativa e importante, senão principal.
Assim ao amanhecer do dia seguinte o primeiro lugar onde mandaram saber dele foi na casa
da guarda. Mas, com surpresa geral, ele não se achava nela, nem sabiam notícias suas; procurou-se
em diversos outros pontos, e nada de novo, nem novas nem mandados. Por lembrança de Vidinha
foram procurar a comadre, e informaram-na de todo o ocorrido: a pobre mulher, que tudo ignorava,
pôs as mãos na cabeça:
— Aquele rapaz nasceu em mau dia, disse ela, ou então aquilo é coisa que lhe
fizeram; do contrário não pode ser...
E pôs-se logo a caminho a procurar o afilhado.
Na comadre estavam fundadas toda as esperanças; ninguém duvidava que apenas ela se
pusesse na rua prontamente se saberia o destino do Leonardo. Enganaram-se todos, porque nem a
própria comadre foi capaz de dar com ele, por tão bom caminho o tinha levado o major. Passaram
muitos dias na mais completa ignorância a respeito do seu fim; e começaram desde então a aparecer suspeitas de que ele próprio teria talvez interesse em ocultar-se, e de que era essa a causa por que
ainda o não haviam descoberto. Estas suspeitas tomaram vulto, e uma certa indignação começou a
aparecer em toda a família, contra semelhante proceder. A indignação cresceu e tomou
repentinamente proporções de ódio intenso, até da parte das próprias duas velhas.
Realmente, a ser verdade o que pensavam, não haveria ingratidão mais negra do que a do
Leonardo para com aquela que tão benignamente o acolhera. Nas invectivas a cada momento
dirigidas contra ele, Vidinha tomava sempre o primeiro lugar, e tinha razão para isso; além de ter
contra ele as razões que tinham todos os outros, tinha ainda o despeito do amor ofendido. Em certos
corações o amor é assim, tudo quanto tem de terno, de dedicado, de fiel, desaparece depois de certas
provas, e transforma-se num incurável ódio.
Uma coisa singular notara Vidinha desde que fora à ucharia, e é que não se passava depois
disto um só dia em que ela não visse pelo menos duas vezes o toma-largura. Tinha-o ela mostrado à
família, e já todos o conheciam. A princípio isso incomodou-a, e tanto mais que ele não passava
uma só vez que lhe não tirasse o chapéu com ar risonho: parecia-lhe semelhante coisa uma prova de
desabrida falta de vergonha. Mais tarde começou a suspeitar que aquela passagem constante e
aqueles cumprimentos deviam por força ter alguma explicação.
Aconteceu que uma das velhas, a mãe de Vidinha, confessasse não ter achado o
toma-largura mal-apessoado, e esta idéia passou a toda a família. Um dia uma das velhas
achando-se na janela com Vidinha, na ocasião em que passava o toma-largura, disse entre os
dentes, e como que indiferentemente:
— Se fosse comigo, bem sabia eu cá o que havia de fazer...
Vidinha, se bem que não pedisse explicação daquele dito, não deixou contudo de dar-lhe
atenção e de cismar nele por algum tempo.
No dia seguinte a mesma velha chamou-a para a janela à hora do dia antecedente; e o
toma-largura passou como sempre, e fez o seu cumprimento. A velha disse nessa ocasião, como
completando o seu pensamento da véspera:
— Ora, eu pregava um mono ao tal Leonardo... e então este que era bem pregado,
por ser ao mesmo tempo aos dois, a ele e a ela.
Lendo na intimidade do pensamento da velha, com a nossa liberdade de contador de
histórias, diremos ao leitor, que o não tiver adivinhado, que aquele-ela-referia-se à moça do caldo.
Dada esta explicação, os menos perspicazes entenderão sem dúvida em que consistia o
mono que a velha pregaria ao Leonardo.
Vidinha, que nada tinha de pouco inteligente, compreendeu tudo às mil maravilhas, e com
tanto mais facilidade, digamo-lo aos leitores, quanto talvez que o pensamento da velha
correspondesse a seus próprios pensamentos. Repetiram-se depois disto mais algumas indiretas da
parte da velha, e Vidinha chegou finalmente a explicações.
Pouparemos aos leitores certos detalhes, e diremos que o resultado de tudo aquilo foi ver-se,
poucos dias depois, o toma-largura em casa de Vidinha fazendo uma visita à família!!...
As visitas continuaram, e pela vizinhança começou a ouvir-se um rumor que tinha tanto de
malévolo como de verdadeiro.
Estavam as coisas neste pé. A paz tinha sido restituída à família. Não sei quem propôs que
se solenizasse o restabelecimento do sossego e as novas venturas com uma súcia para fora da
cidade. Efetuou-se semelhante pensamento. Por uma singularidade escolheram para lugar da
patuscada os-Cajueiros,-onde a família, tinha feito conhecimento com o Leonardo.
O toma-largura fora convidado, nem podia deixar de sê-lo, porque era ele um dos motivos
da festa. Infelizmente porem tinha ele um defeito: no estado ordinário costumava beber
sofrivelmente; quando tinha algum motivo de alegria costumava dobrar a dose, e quando isto
sucedia dava-lhe para valentão e desordeiro. Disto resultou que no meio da súcia, na ocasião de
jantar, deu-se por ofendido, não sabemos por quê, e começou por agarrar nas pontas da esteira que
servia de mesa, e fazer voar sobre a cabeça dos convivas pratos, garrafas, copos e tudo o mais. Os
dois primos quiseram contê-lo, mas não o conseguiram: Vidinha chorava, as velhas se maldiziam; uns tentavam restabelecer a paz, e outros aumentavam a desordem. Reinava por conseqüência uma
algazarra infernal.
Quando menos o esperavam, viu-se surdir dentre as moitas o major Vidigal fechando um
círculo de granadeiros que partiam de sua esquerda e da sua direita, e que encerravam toda a súcia.
— Segura aquele homem, granadeiro, disse o major a um dos seus soldados,
apontando para o toma-largura que se achava em pé cambaleando, tendo numa mão um balaio em
que viera a farinha, e na outra uma garrafa com que ameaçava os circunstantes.
A ordem do major o granadeiro hesitou: toda a família, reunindo-se em um grupo, soltou um
grito de espanto apontando para o soldado.
— Então! replicou o major vendo aquela hesitação.
O granadeiro deu um passo para o toma-largura.
— Devagar com a louça, camarada, bradou este; lembre-se que ainda não ajustamos
contas a respeito daquele caldo...
O toma-largura acabava de reconhecer no granadeiro o nosso amigo Leonardo, como toda a
família o tinha reconhecido apenas ele apareceu.
Era com efeito ele.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
KlasiklerA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...