I -Origem, Nascimento e Batismo

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Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo-O canto dos meirinhos-; e bem lhe assentava o nome, porque
era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não
pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos
do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos
extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a
demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os
extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis
combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se
chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros;
nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer
procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não,
não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos, nos seus semblantes transluzia um
certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam
sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático
espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e
coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Colocado sob a importância vantajosa destas
condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina
ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras que,
desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se
fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível-Dou-me
por citado.
Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram
uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se
começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o
procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida,
e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas
algibeiras, e até a última parcela de sua paciência,
Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época
veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam-cadeiras de
campanha-um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em
tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias
policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina
havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e
gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o
mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e
pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais
saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo
apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do
hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica
quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.
Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria;
aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de
quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde
tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da
hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo,
fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era
maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que
passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé
direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e
deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma
declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao
anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um
pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que
pareciam sê-lo de muitos anos.
Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar
juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses
depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e
vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas
seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais
nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história.
Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve suas
dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e da
comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe que houve
nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar, cantavam ao desafio,
segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado. O
compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento favorito da gente do ofício. A
princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos, e propôs que se dançasse o minuete
da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse dificuldade em encontrarem-se pares. Afinal
levantaram-se uma gorda e baixa matrona, mulher de um convidado; uma companheira desta, cuja
figura era a mais completa antítese da sua; um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com
fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O
compadre foi quem tocou o minuete na rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria,
acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse
muitas vezes o compasso, e fosse obrigado a recomeçar outras tantas.
Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, como se dizia
naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas senhoras,
decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em um lugar isolado
da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do oficio, de casaca,
calção e espadim, acompanhando com um monótono zum-zum nas cordas do instrumento o
garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração para o
seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele. A modinha era assim: Quando
estava em minha terra, Acompanhado ou sozinho, Cantava de noite e de dia Ao pé dum copo de
vinho!
Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem não pareceu dar-lhe
todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como obsequiara ao padrinho, marcando-lhe o
compasso a guinchos e esperneios. À Maria avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.
O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira, foi o
adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda
mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar
através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava
perto.
A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado e
pondo-lhe no cimeiro um raminho de arruda.

Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de AlmeidaOnde histórias criam vida. Descubra agora