É muito antigo dizer-se que há uma coisa ainda pior do que um inimigo, e é um mau amigo.
Um dos convidados do Leonardo-Pataca dizia-se muito amigo do Teotônio, e pelo empenho que o
Leonardo mostrara em livrá-lo das garras do major, protestara desde logo repartir com ele parte
dessa amizade, sem que nenhum dos dois ficasse prejudicado. Poucos instantes depois desse
protesto deu logo a primeira prova de que estava disposto a cumpri-lo.
Enquanto se passavam as cenas que acabamos de descrever tinha amanhecido: o major e sua
gente punham-se em retirada: ainda se achavam porém nas imediações do lugar onde se Havia feito
a tentativa para prender o Teotônio, quando o tal amigo a que nos referimos, que fora um dos
últimos a retirar-se, encontrando a patrulha, e vendo que o Teotônio não ia no meio dela, concluiu
que os planos haviam surtido bem, e que o major ficara desta vez logrado. Teve por isso um acesso
de alegria; e esquecendo a presença do major, correu ao Leonardo, abraçou-o, exclamando com
arrebatado ímpeto:
— Bravo! como esta não fazes duas em toda a tua vida; foi limpa; ele há de ficar-te
obrigado para sempre, e eu com ele, porque sou seu amigo e teu também!
O Leonardo ficou estático diante de semelhante imprudência. O major, que ia cabisbaixo
pensando no logro que acabara de levar, voltou-se repentinamente: a palavra ele, proferida pelo
terrível amigo, abriu luz a seus olhos. O Leonardo foi tirado do torpor em que se achava pela voz do
major a dizer-lhe compassadamente:
— Recolha-se preso ao quartel.
A esta sentença o Leonardo ergueu do fundo d’alma tudo quanto havia aí de despeito, de
rancor, e lançou um olhar sobre o imprudente que a havia provocado, e que ainda muito senhor de si
apertava-lhe desapiedadamente a mão, que parecia não estar disposto a largar tão cedo.
Deixemos agora o Leonardo, vítima de sua dedicação, caminhar preso para o quartel, e
passemos a outras coisas. Há muito tempo que não falamos em D. Maria e na sua gente. Saibam os
leitores que, passada a lua-de-mel, em que tudo foram rosas, o nosso José Manuel pusera, como se
costuma dizer, as mangas de fora, e tais coisas fez, que em poucos meses estava tudo em guerra
aberta; tinha-se ele com sua mulher Luisinha mudado de casa de D. Maria, e por causa de dote vai,
dote vem, herança daqui, herança dali, havia-lhe D. Maria proposto uma ação por tal sorte
complicada, que era de desconfiar que não bastassem para ver-lhe o fim os dias que restavam de
vida à pobre velha.
Tinha-se José Manuel tornado para Luisinha um verdadeiro marido-dragão, desses que só
aquele tempo os conta tão perfeitos, que eram um suplício constante para as mulheres. Depois que
se havia mudado de casa de D. Maria, nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas,
pelas frestas da rótula: então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora; aqueles passeios e
aquelas palestras à porta em noite de luar; aqueles domingos de missa na Sé, ao lado de sua tia com
o seu rancho de crioulinhas atrás; as visitas que recebiam, e o Leonardo de quem tinha saudades, e
tudo aquilo enfim a que não dava nesse tempo muito apreço, mas que agora lhe parecia tão belo e
tão agradável. Tendo-se casado com José Manuel, para seguir a vontade de D. Maria, votava a seu
marido uma enorme indiferença, que é talvez o pior de todos os ódios.
Pois a vida de Luisinha, depois de casada, representava com fidelidade a vida do maior
número das moças que então se casavam: era por isso que as Vidinhas não eram raras, e que poucas
famílias haviam que não tivessem a lamentar um desgostozinho no gênero do que sofreu aquela
pobre família, que indo ao Oratório de Pedra, viera dizimada para casa, e cuja história serviu de
tema às intrigas da comadre, quando quis pôr a José Manuel fora do lance.
Ora, é claro que tendo D. Maria ficado um pouco séria com a comadre por causa de toda
aquela intriga que precedera ao casamento de José Manuel com sua sobrinha, agora, que estava com
este de candeias às avessas, se reatasse o laço da amizade que por um pouco afrouxara: sucedia
assim com efeito.
Um dia as duas encontraram-se na missa, tornaram-se a falar; as desgraças do Leonardo, que
fizeram tema a essa conversação, enterneceram a D. Maria, que por seu turno também referiu à
comadre tudo quanto sucedia agora à pobre Luisinha.
— Ai, senhora! dizia a comadre referindo-se a José Manuel, parece que me roncava
cá o quer que seja quando via aquele maldito; arrenego do homem que é um valdevinos às direitas.
Aquilo há de levar a pobre menina à sepultura. Coitada! bem-criada e malfadada.
— Nunca pensei, criatura, nunca pensei que sucedesse tal... Mas aquilo como era
finório! que palavrinhas doces! que santidade aquela! Agora, senhora, agora sou eu capaz de
acreditar na história da moça furtada no Oratório de Pedra: ele tem bofes para tal... Mas hei de me
ver vingada, oh! se hei de! tão certo como estar eu aqui: os desembargadores lá estão, que me hão
de dar esse gosto: espero isso em Deus.
Desta conversa, e do mais que se seguiu, nasceu a conciliação das duas.
Quando certas amizades são uma vez interrompidas, tendo mesmo sofrido um leve
estremecimento, é difícil que voltem depois ao estado primitivo; com outras amizades acontece
porém o inverso; os estremecimentos aproveitam, porque é fácil a volta da paz, e parece que depois
disto se tornam mais estreitas. A amizade que existia entre D. Maria e a comadre era deste último
gênero. Portanto depois daquela conversa na missa, não só voltaram as relações entre as duas ao seu
primitivo estado, como se tornaram mais que nunca sólidas. Daí em diante não houve um só
segredo entre as duas que não fosse mutuamente comunicado, e elas fizeram pacto de se ajudarem
reciprocamente para dar remédio, uma aos males da sobrinha, outra às diabruras do afilhado.
O Leonardo, como dissemos, achava-se preso; fizera disso ciente à madrinha, que se pôs
logo em alvoroto, não só pelo fato em si, como pelo generoso motivo que o Havia ocasionado. O
primeiro passo pois que tiveram a dar as duas, D. Maria e a comadre, em virtude do seu pacto, foi
tratar de alcançar a soltura do Leonardo, e livrá-lo do mais que (sabe Deus) lhe estaria preparado.
Vamos ver como se houveram em semelhante empenho.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
ClásicosA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...