XXII - Aliança

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Se Leonardo se afligira do modo que acabamos de ver pelo contratempo que lhe sobreviera
com o aparecimento e com as disposições de José Manuel, o padrinho não se incomodava menos
com isso: vendo que o afilhado se fazia homem, e tendo decididamente abortado aquele seu
gigantesco plano de mandá-lo a Coimbra, enxergava na sobrinha de D. Maria um meio de vida
excelente para o seu rapaz. Verdade é que se lembrava de que D. Maria podia com muito justa
razão, se as coisas continuassem do mesmo modo, quando chegasse o momento do desfecho das
coisas, recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava em coisa alguma, e que não tinha
futuro. Por este motivo muitas vezes instava com o afilhado para que ensaiasse na cara de algum
freguês tolo entrar no ofício; porém este recusava-se obstinadamente. A comadre, quando alguma
vez aparecia por casa do barbeiro, não cessava de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz
entrar para a Conceição. Uma ocasião em que nisso falou diante dele, custou-lhe a história uma
forte sarabanda: o rapaz tomara gosto à vida de vadio, e por princípio algum queria deixá-la. E se
em outras ocasiões estava ele desse humor, agora depois dos últimos acontecimentos, quando o
amor e o ciúme lhe ocupavam a alma, não queria ouvir falar em semelhantes coisas; acreditava que
a sua melhor ocupação devia consistir em dar cabo do rival que se lhe antepusera.
No meio de tudo isto pior era que José Manuel parecia adiantar-se cada vez mais; astuto
como era, insinuava-se destramente no animo de D. Maria, e a cativava com atenções de toda a
sorte. O compadre começou a banzar sobre o caso, e um dia veio-lhe uma idéia: era preciso pôr a
comadre ao corrente do que se passava, e interessá-la no negócio; ela era bem capaz, se quisesse, de
arcar com José Manuel, e pô-lo fora de combate; gozava boa fama de ter jeito para essas coisas.
Com efeito mandou chamar a comadre e expôs-lhe tudo.
— Sim! respondeu ela ao ouvir a narração; o caso é este? pois está de cor o tal
sujeito: hei de mostrar-lhe para quanto presto. Já hoje mesmo vou visitar a D. Maria.
Mal sabia José Manuel que tormenta se levantava contra ele. Há muito percebera ele que
Leonardo e seu padrinho o não podiam tragar, e mesmo que tinham segundas tenções a respeito de
Luisinha, porém nunca lhe passara pela mente que seria mister lutar com eles. Em breve teve de ver
que se enganava. A comadre foi, como prometera, à casa de D. Maria, e achando lá José Manuel
procurou fazer-se ostensivamente muito sua camarada, ainda que baixinho, e de vez em quando
soltava perto de D. Maria algumas indiretas contra ele.
Quando José Manuel acabava de contar uma história com todos os detalhes costumados
sobre a vida deste ou daquele, a comadre murmurava, por exemplo:
— Que língua! safa...
E com estas e outras ia pondo em relevo, sem parecer que tinha tal intenção, o caráter do
adversário.
Além da qualidade de maldizente, José Manuel mentia com um descaro como raras vezes se
encontra. D. Maria, amiga de novidades, e além disso muito crédula, comungava perfeitamente
quanta peta lhe queria ele embutir. Uma das suas histórias mais comuns era a que ele intitulava-O
naufrágio dos potes.-Acontecera-lhe na sua última viagem à Bahia, e ele a contava pelo modo
seguinte:
“Estávamos quase a chegar ao ancoradouro; viajava ao lado do meu navio um enorme peru
carregado unicamente de potes. De repente arma-se um temporal, que parecia vir o mundo abaixo; o
vento era tão forte, que do mar, apesar da escuridão, viam-se contradançar no espaço as telhas
arrancadas da cidade alta. Afinal quando já parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo,
veio uma onda tão forte e em tal direção, que as duas embarcações esbarraram com toda a força
uma contra a outra. Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar, não puderam
mais resistir, e abriram-se ambas de meio a meio: o navio vazou toda a sua carga e passageiros, e o
peru toda a sua carregação de potes; ficou o mar coalhado deles, em tão grande quantidade os
havia! Os marinheiros e outros passageiros trataram de agarrar-se a tábuas, caixões e outros objetos
para se salvarem; porém o único que se escapou fui eu, e isso devo à feliz lembrança que tive; do
pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que boiava mais perto. Com o meu peso o pote mergulhou, e enchendo-se d’água desapareceu debaixo de meus pés; porém isto não
teve lugar antes que eu, percebendo o que ia acontecer, não saltasse imediatamente deste pote para
outro. A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma coisa, porém servi-me do mesmo meio, e
assim, como a força das ondas os impelia para a praia, vim de pote em pote até à terra sem o menor
acidente!”
Como esta contava José Manuel milhares de histórias.
Foi também isso um tema de que se serviu a comadre para o desconceituar no ânimo de D.
Maria, sempre, é verdade, muito sorrateiramente.
Veremos quais foram os resultados que alcançaram o compadre e o Leonardo com a aliança
formada com a comadre contra o concorrente à Luisinha.

Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de AlmeidaOnde histórias criam vida. Descubra agora