XIV - Nova Vingança e Seu Resultado

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A sarabanda que o mestre-de-cerimônias passara aos dois pequenos em razão do que haviam
feito à pobre mulher não produziu, como dissemos, nenhum efeito sobre eles no sentido de os
emendar; não perdoaram porém a humilhação que sofreram diante da sua vítima, e a vingança de
que ela tinha gozado; na primeira ocasião que tiveram tiraram desforra, pregando também uma peça
ao mestre-de-cerimônias.
Foi o caso assim:
O mestre-de-cerimônias era um padre de meia idade, de figura menos má, filho da Ilha
Terceira, porém que se dava por puro alfacinha: tinha-se formado em Coimbra; por fora era um
completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanápalo, que podia por si
só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; era pregador que buscava sempre por assunto
a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido; porém interiormente era sensual como um
sectário de Mafona. O público ignorava talvez semelhante coisa, porém outro tanto não acontecia
aos dois meninos, que andavam ao fato de tudo: o mestre-de-cerimônias, fiado em que pela sua
pouca idade dariam eles pouca atenção a certas coisas, tinha-os algumas vezes empregado no seu
serviço, mandando recados a uma certa pessoa que, saiba o leitor em segredo, era nada menos do
que a cigana, objeto dos últimos cuidados do Leonardo, com que S. Rev.ma vivia há certo tempo
em estreitas relações, salvando, é verdade, todas as aparências da decência.
Chegou o dia de uma das primeiras festas da igreja, em que o mestre-de-cerimônias era
sempre o pregador: era no sermão desse dia que o homem se empregava, muito tempo antes, pondo
abaixo a livraria, e fazendo um enorme esforço de inteligência (que não era nele coisa muito
vigorosa). Já se vê pois que ele devia amar o seu sermão tanto que quase rebentou de raiva em um
ano em que por doente o não pôde pregar. Entendia que todos o ouviam com sumo prazer, que o
povo se abalava à sua voz: enfim, aquele sermão anual era o meio por que ele esperara chegar a
todos os fins, a que contava dever toda a sua elevação futura; era o seu talismã. Digamos entretanto
que era bem mau caminho o tal sermão, porque se podia ele demonstrar alguma coisa, era a
insuficiência do padre para qualquer coisa desta vida, exceto para mestre-de-cerimônias, em que
ninguém o desbancava. Pois foi nesse ponto delicado que os dois meninos buscaram feri-lo, e o
acaso os favoreceu excedendo de muito os seus desejos e esperanças, e fazendo a sua vingança
completíssima.
Chegou, como dissemos, o dia da festa; havia três ou quatro dias antes que o
mestre-de-cerimônias não saia de casa, empregado em decorar a importante peça. Foi o nosso
sacristão calouro encarregado de lhe ir avisar da hora do sermão. Chegou à casa da cigana, onde o
padre costumava a estar; bateu, e, apesar de todas as recomendações que costumava ter, disse em
voz alta:
— O Rev. mestre-de-cerimônias está aí?...
— Fale baixo, menino, disse a cigana de dentro da rótula... O que quer você com o
Sr. padre?
— Precisava muito falar com ele por causa do sermão de amanhã.
— Entra, entra, disse o padre que o ouvira...
— Venho dizer a V. Rev.ma, disse o menino entrando, que amanhã às dez horas há
de estar na igreja.
— Às dez? Uma hora mais tarde do que de costume...
— Justo, respondeu o menino sorrindo-se internamente de alegria, e saiu.
Foi logo dali dar parte ao companheiro de que o seu plano tinha saído completamente aos
seus desejos, pois o que ele queria era que o padre faltasse ao sermão, e por isso, encarregado de lhe
indicar a hora, a trocara, e em vez de nove dissera dez.
Dispuseram-se as coisas; postou-se a música de barbeiros na porta da igreja; andou tudo em
rebuliço: às 9 horas começou a festa.
As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade, a
certos respeitos, do que as de hoje: tinham entretanto alguns lados cômicos; um deles era a música de barbeiros à porta. Não havia festa em que se passasse sem isso; era coisa reputada quase tão
essencial como o sermão; o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjar-se; meia dúzia
de aprendizes ou oficiais de barbeiro, ordinariamente negros, armados, este com um pistão
desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada,
porém estrondosa, que fazia as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja.
A festa seguiu os seus trâmites regulares; porém apenas se foi aproximando a hora, começou
a dar cuidados a tardança do pregador. Fez-se mais esta cerimônia, mais aquela, e nada de aparecer
o homem. Despachou-se a toda pressa um dos meninos que não entrara na festa para ir procurar o
padre; ele deu duas voltas pela vizinhança, e veio dizendo que o não tinha encontrado. Subiram os
apuros; não havia remédio; era preciso um sermão, fosse como fosse.
Estava assistindo à festa um capuchinho italiano que por bondade, vendo o aperto geral,
ofereceu-se para improvisar o sermão.
— Mas V. Rev.ma não fala a língua da gente, objetaram-lhe.
— Capisco! respondeu este, ed la necessità!...
Depois de alguma perplexidade aceitaram-se finalmente os bons ofícios do capuchinho, e foi
ele levado ao púlpito. Os meninos triunfantes sorriam-se um para o outro. Apenas apareceu o
pregador ao povo houve um murmúrio geral; os gaiatos sorriam-se contando já com o partido que
dali tirariam para um bom par de risadas; algumas velhas prepararam-se para uma grande
compunção ao aspecto das imensas barbas do pregador; outras menos crentes, vendo que não era o
orador costumado, exclamaram despeitadas:
— Arrenego!
— Deus me perdoe.
— Pois aquilo é que prega hoje?...
Apesar porém de tudo isto, a atenção foi profunda e gera., animando a todos uma grande
curiosidade. O orador começou: falava já há um quarto de hora sem que ninguém ainda o tivesse
entendido: começavam já algumas velhas a protestar que o sermão todo em latim não tinha graça,
quando de repente viu-se abrir a porta do púlpito e aparecer a figura do mestre-de-cerimônias
adiantou-se, afastou com a mão o pregador italiano, que surpreendido parou um instante, e entoou
com voz rouca e estrondosa o seu per signum crucis. Aquela voz conhecida o povo despertou do
aborrecimento, benzeu-se, e se dispôs a escutá-la. Nem todos porém foram desta opinião;
entenderam que se devia deixar acabar o capuchinho, e começaram a murmurar. O capuchinho não
quis ceder de seu direito, e prosseguiu na sua arenga. Foi uma verdadeira cena de comédia, de que a
maioria dos circunstantes ria-se a não poder mais; os dois meninos, autores principais da obra,
nadavam em um mar de rosas.
— Ó mei cari fratelli! exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e
meiga, la voce de la Providenza...
— Semelhante às trombetas de Jericó, rouquejava por outro lado o
mestre-de-cerimônias...
— Piage al cor... acrescentava o capuchinho.
— Anunciando a queda de Satanás, prosseguia o mestre-de-cerimônias.
E assim levaram por algum tempo os dois, acompanhados por um coro de risadas e
confusão, até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto, murmurando despeitado:
— Che bestia, per Dio!
Acabado o sermão, desceu do púlpito o mestre-de-cerimônias já um pouco aplacado por ter
conseguido fazer-se ouvir, porém ainda bastante furioso para vir protestando arrancar uma por uma
as quatro orelhas dos dois pequenos, de quem desconfiava que partira o que acabava de sofrer.
Chegou à sacristia, que estava cheia de gente; vendo os dois meninos investiu para eles, e
prendendo a cada um com uma das mãos pela gola da sobrepeliz...
— Então... então... dizia com os dentes cerrados... a que horas é o sermão?
— Eu disse às nove, sim, senhor; pode perguntar à moça, que ela bem ouviu...
— Que moça, menino, que moça? disse o padre exasperado por estar tanta gente e
ouvir aquilo.
— Aquela moça cigana, lá onde V. Rev. ma estava; ela ouviu, eu disse às nove.
— Oh! disseram os circunstantes.
— É falso, respondeu com força o mestre-de-cerimônias largando os meninos para
evitar novas explicações, e dando satisfação aos circunstantes com protestos de ser falso o que os
meninos acabavam de dizer.
Entretanto serenou o alvoroço, acabou-se a festa, o povo retirou-se. O mestre-de-cerimônias
sentado a um canto pensava consigo:
— E que tal? não ia perdendo o meu sermão deste ano por causa daquele
endiabrado?! Depois que o maldito menino entrou para esta igreja anda tudo aqui em uma poeira!
Ainda em cima dizer à vista de tanta gente que eu estava em casa da cigana! Nada... vou dar com
ele daqui para fora...
E com efeito tratou de fazer com que os dois meninos, ou pelo menos o mais novo, fosse
despedido. Sem muito custo o conseguiu, porque por certo não gozava ele de grandes simpatias.
Foi esta a pior peça que se lhe podia pregar: ele estava como em um paraíso, e expeliam-no
dele; e depois a maldita vizinha como não havia ficar satisfeita vendo-o despedido, e a madrinha
que se opusera formalmente à sua entrada para a Sé... tudo isto fazia-o desesperar...
Não se tinha ele enganado em suas previsões; apenas chegou em casa, e que se soube pela
vizinhança do que se tinha passado, a vizinha, pilhando de jeito o compadre:
— Então, disse-lhe, eu não lhe tenho dito que aquilo tem maus bofes?...
— Senhora, pelo amor de Deus, meta-se com a sua vida...
— Estou vingada... pensava que a minha mantilha nova havia de ficar assim...
O compadre retirou-se para evitar nova desordem.
A comadre, apenas soube também do sucesso, veio ter com o compadre para dizer-lhe:
— Eu bem lhe digo; ele não serve para aquilo; é melhor pô-lo na Conceição; lá há
mais sujeição; olhe, eu podia arranjar isso com o tenente-coronel...
O compadre porém não pareceu resolvido a aceitar o conselho.

Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de AlmeidaOnde histórias criam vida. Descubra agora