XXXI - Novos Amores

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Chegaram todos depois de longo caminhar, e quando já brilhava nos céus um desses luares
magníficos que só fazem no Rio de Janeiro, a uma casa da rua da Vala. Naqueles tempos uma noite
de luar era muito aproveitada, ninguém ficava em casa; os que não saíam a passeio sentavam-se em
esteiras às portas, e ali passavam longas horas em descantes, em ceias, em conversas, muitos
dormiam a noite inteira ao relento.
Como os nossos conhecidos já tinham dado um grande passeio, adotaram o expediente das
esteiras à porta, e continuaram assim pela noite em diante a súcia em que haviam gasto o dia, pois
aquilo que Leonardo vira nos Cajueiros, e em que também tomara parte, era o final de uma
patuscada que havia começado ao amanhecer, de uma dessas romarias consagradas ao prazer, que
eram então tão comuns e tão estimadas.
Agora devemos dar ao leitor conhecimento da nova gente, no meio da qual se acha o nosso
Leonardo. Se nos pudéssemos socorrer aqui do amigo José Manuel, sem dúvida nos desfolharia ele
toda a árvore genealógica dessa família a quem o amigo do Leonardo chamava a sua gente: porém
contentem-se os leitores com o presente sem indagar o passado. Saibam pois que a família era
composta de duas irmãs, ambas viúvas, ou que pelo menos diziam sê-lo, uma com três filhos e outra
com três filhas; passando qualquer das duas dos seus quarenta e tantos; ambas gordas e
excessivamente parecidas. Os três filhos da primeira eram três formidáveis rapagões de 20 anos
para cima, empregados todos no Trem; as três filhas da segunda eram três raparigas desempenadas,
orçando pela mesma idade dos primos, e bonitas cada uma no seu gênero. Uma delas já os leitores
conhecem; é Vidinha, a cantora de modinhas; era solteira como uma de suas irmãs; a última era
também solteira, porém não como estas duas. O amigo do Leonardo que explique o que isso quer
dizer, e explicando dará também a conhecer o que era ele próprio na família. Os mais que se
achavam presentes eram pela maior parte vizinhos que se reuniam para aquelas súcias, que eram
tradicionais na família.
Quando chegaram à casa, o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de parte, e começou a
conversar com elas, sem dúvida a respeito do Leonardo, pois que o olhavam todos três durante a
conversa; e mesmo quem tivesse o ouvido atilado teria escutado às velhas estas palavras:
— Coitado do moço!...
— Ora vejam que pai de más entranhas!...
Outro qualquer que tivesse mais idade, ou antes, falando claro, mais juízo e outra educação,
envergonhar-se-ia talvez muito de achar-se na posição em que se achava o Leonardo, porém ele
nem nisso pensava, e o que é mais, nem mais pensava naquilo que até então lhe não saía da cabeça,
isto é, em Luisinha de um lado e José Manuel do outro: agora não via senão os olhos negros e
brilhantes, e os alvos dentes de Vidinha; não ouvia senão o eco da modinha que ela cantara. Estava
pois embebido num êxtase contemplativo.
No mais pensaria quando lhe restasse tempo.
Mal se haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a calçada, o
Leonardo propôs logo que se cantasse uma nova modinha.
— Qual... respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumada risada;
estou já tão cansada... que nem posso!
— Ora... ora... disseram umas poucas de vozes. Além do costume das risadas tinha
Vidinha um outro, e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual muito acentuado;
respondeu ainda portanto:
— Qual... pois se eu também já cantei tudo que sabia. Qual, meu Deus! nem eu
posso mais!
— Ainda não cantou a minha favorita, disse um dos presentes.
— Nem a minha, disse outro.
— Eu também, acrescentou outro, ainda não lhe pedi aquela cá do peito.
— Qual, meu Deus! onde é que isto vai parar!
— Ora, mana, não se faça de boa.
— Ai, criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para
cantardes uma modinha?
Leonardo, vendo sua causa advogada por tantas vozes, conservou-se calado. Tentados mais
alguns meios, e feitas mais algumas negaças, Vidinha decidiu-se, e tomando a viola cantou,
segundo a indicação de uma das velhas, o seguinte:
Duros ferros me prenderam
No momento de te ver;
Agora quero quebrá-los,
É tarde não pode ser.
Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: ainda bem não tinham
expirado as últimas notas do canto, e já, passando-lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias,
admirava-se ele de como é que havia podido inclinar-se por um só instante a Luisinha, menina
sensaborona e esquisita, quando haviam no mundo mulheres como Vidinha.
Decididamente estava apaixonado por esta última.
O leitor não se deve admirar disto, pois não temos cessado de repetir-lhe que o Leonardo
herdara de seu pai aquela grande cópia de fluido amoroso que era a sua principal característica.
Com esta herança parece porém que tinha ele tido também uma outra, e era a de lhe sobrevir sempre
uma contrariedade em casos semelhantes. José Manuel fora a primeira; vejamos agora qual era, ou
antes quem era a segunda.
Se o leitor pensou no que há pouco dissemos, isto é, que naquela família haviam três primos
e três primas, e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos, deve ter cismado alguma coisa
a respeito. Três primos e três primas, morando na mesma casa, todos moços... não há nada mais
natural; um primo para cada prima, e está tudo arranjado. Cumpre porém ainda observar que o
amigo do Leonardo tomara conta de uma das primas, e que deste modo vinha a haver três primos
para duas primas, isto é, o excesso de um primo. À vista disto o negócio já se torna mais
complicado. Pois para encurtar razão, saiba-se que haviam dois primos pretendentes a uma só
prima, e essa era Vidinha, a mais bonita de todas; saiba-se mais que um era atendido e outro
desprezado: logo, o amigo Leonardo terá desta vez de lutar com duas contrariedades em vez de
uma.
Mas por ora de nada sabia ele, e entregava-se tranqüilo às suas emoções sem se lembrar do
que qualquer se lembraria, que entre primos e primas há Assim um certo direito mútuo em negócio
de amor, que muito prejudica a qualquer pretendente externo.
Gastaram grande parte da noite ali sentados, e trataram de recolher-se já muito tarde.
O amigo do Leonardo, a quem daqui em diante trataremos pelo seu próprio nome de Tomás
com o apelido-da Sé-ambos herdados de seu pai, declarou que o seu amigo ficava ali por aquela
noite, por já ser muito tarde; quis assim poupar-lhe um vexame, e mostrou nisto ser bom amigo.
Agora que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro, vamos ocupar-nos de alguma
coisa de importante que havíamos deixado suspensa.

Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de AlmeidaOnde histórias criam vida. Descubra agora