XXXIII - O Agregado

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Passaram-se assim algumas semanas: Leonardo, depois de acabadas todas as cerimônias, foi
declarado agregado à casa de Tomás da Sé, e aí continuou convenientemente arranjado. Ninguém se
admire da facilidade com que se faziam semelhantes coisas; no tempo em que se passavam os fatos
que vamos narrando nada havia mais comum do que ter cada casa um, dois e às vezes mais
agregados.
Em certas casas os agregados eram muito úteis, porque a família tirava grande proveito de
seus serviços, e já tivemos ocasião de dar exemplo disso quando contamos a história do finado
padrinho de Leonardo; outras vezes porém, e estas eram em maior número, o agregado, refinado
vadio, era uma verdadeira parasita que se prendia à árvore familiar, que lhe participava da seiva sem
ajudá-la a dar os frutos, e o que é mais ainda, chegava mesmo a dar cabo dela. E o caso é que,
apesar de tudo, se na primeira hipótese o esmagavam com o peso de mil exigências, se lhe batiam a
cada passo com os favores na cara, se o filho mais velho da casa, por exemplo, o tomava por seu
divertimento, e à menor e mais justa queixa saltavam-lhe os pais em cima tomando o partido de seu
filho, no segundo aturavam quanto desconcerto havia com paciência de mártir, o agregado
tornava-se quase rei em casa, punha, dispunha, castigava os escravos, ralhava com os filhos,
intervinha enfim nos mais particulares negócios.
Em qual dos dois casos estava ou viria estar em breve o nosso amigo Leonardo? O leitor que
o decida pelo que se vai passar.
Principiemos por declarar que as duas velhas irmãs tinham concedido desde o primeiro
momento uma decidida simpatia por ele, e era esse o único ponto por onde o podemos julgar um
pouco feliz: se a cada passo encontrava contrariedades e antipatias, também lhe não faltavam por
contrabalanço simpatias e favores. Isto já era meio caminho andado para qualquer projeto que ele
formasse, qualquer intenção que tivesse ou desejo que se lhe despertasse. Mas note-se que para não
falhar a lei das compensações, que pesava constantemente sobre ele, logo o projeto, a intenção e
desejo que teve sucedeu ser a respeito de uma coisa que já tinha despertado igual projeto, intenção e
desejo em duas outras pessoas, o que equivale a dizer-se, como já o fizemos, que tinha ele de lutar
com duas dificuldades.
Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um
soprozinho, por brando que fosse, a fazia voar, outro de igual natureza a fazia revoar, e voava e
revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e
despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para
não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. Portanto não foram de modo algum mal recebidas
as primeiras finezas do Leonardo, que desta vez se tornou muito mais desembaraçado, quer porque
já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado, quer porque agora fosse a paixão mais forte, embora
esta última hipótese vá de encontro à opinião dos ultra-românticos, que põem todos os bofes pela
boca, pelo tal-primeiro amor:-no exemplo que nos dá o Leonardo aprendam o quanto ele tem de
duradouro. Se um dos primos de Vidinha, que dissemos ser o atendido naquela ocasião, teve motivo
para levantar-se contra o Leonardo como seu rival, o outro primo, que dissemos ser o desatendido,
teve dobrada razão para isso, porque além do irmão apresentava-se o Leonardo como segundo
concorrente, e o furor de quem se defende contra dois é, ou deve ser sem dúvida, muito maior do
que o de quem se defende contra um. Declarou-se portanto, desde que começaram a aparecer os
sintomas do quer que fosse entre Vidinha e o nosso hóspede, guerra de dois contra um, ou de um
contra dois. A princípio, foi ela surda e muda; era guerra de olhares, de gestos, de desfeitas, de más
caras, de maus modos de uns para com os outros; depois, seguindo o adiantamento do Leonardo,
passou a ditérios, a chasques, a remoques. Um dia finalmente desandou em descompostura cerrada,
em ameaças do tamanho da torre de Babel, e foi causa disto ter um dos primos pilhado o feliz
Leonardo em flagrante gozo de uma primícia amorosa, um abraço que no quintal trocava ele com
Vidinha.
— Aí está, minha tia, dissera enfurecido o rapaz dirigindo-se à mãe de Vidinha; ai
está o lucro que se tira de meter-se para dentro de casa um par de pernas que não pertence à
família...
— Onde é, onde é que está pegando fogo? disse a velha em tom de escárnio,
supondo ser alguma asneira do rapaz, que era em tudo muito exagerado.
— Fogo, replicou este; se ali pegar fogo não haverá água que o apague... e olhe o
que lhe digo, se não está pegando fogo... está-se ajuntando lenha para isso.
Vidinha, que vinha chegando nessa ocasião, tomou a palavra e falou durante meia hora sem
interrupção, soltando contra os dois primos (pois que o outro já tinha também intervindo) uma
tremenda catilinária em que a palavra-qual-foi repetida enorme número de vezes. Leonardo teve
também de defender-se, e falou pelos cotovelos. As duas velhas acompanharam aos quatro seguidas
das outras duas moças, que metiam também de vez em quando a sua colherada.
Seria inútil a tentativa de querermos repetir as palavras textuais de cada um dos faladores;
isso seria coisa pouco mais ou menos semelhante a querer contar-se numa tempestade os pingos de
chuva que caem. Só quem já teve ocasião de assistir pode bem avaliar o que era e talvez ainda é
uma dessas brigas no interior de uma família. Todos falam a um tempo, esforçando-se cada um por
falar mais alto do que todos os outros; ninguém parece atender às desculpas que se apresentam, nem
às recriminações que se fazem, e entretanto de minuto em minuto cada qual tomando mais calor, se
julga dobradamente ofendido; as juras se cruzam, as ameaças se chocam; não fica no dicionário
termozinho de escolha que não saia à frente; umas questões trazem outras, estas ainda outras;
recorre-se às ofensas passadas, presentes e futuras para fazer-se carga aos adversários. Tudo enfim
se diz, e nada se consegue; a briga dura muitas horas, ao termo das quais os contendores, fatigatis
sed non saciatis, abandonam o campo, ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o
estavam a princípio. E se por acaso, tocando já em retirada, algum ousa ainda soltar uma derradeira
imprecação, pega de novo a coisa, e dura ainda bom pedaço. As mais das vezes fica tudo em
palavras.
Desta vez porém não sucedeu assim: um dos primos, que era esquentadete, avançou para o
Leonardo depois de lhe ter mandado, como batedor, uma grande injúria, e deu-lhe dois safanões,
agarrando-o pela gola da camisa. Leonardo, que neste mundo só tinha medo do pai, reagiu contra o
agressor; as duas velhas e Vidinha, tentando apartá-los, não faziam mais do que romper-lhes a
roupa e aumentar-lhes a raiva; as demais pessoas ocupavam-se em bater nas paredes e chamar os
vizinhos. Lutaram os dois por algum tempo sem que disso resultasse acidente grave para nenhum
deles, e afinal apartaram-se. Leonardo, apenas se viu livre do seu adversário, foi querendo pôr-se no
andar da rua: pesava sobre o infeliz desde criança uma espécie de sina de Judeu Errante. As velhas,
que em todo o barulho tinham tomado o partido dele, não consentiram porém nisso; alegaram que
estavam em sua casa, e podiam mandar como quisessem. Leonardo insistiu apesar disso e apesar
dos rogos de Vidinha; porém no momento em que tentava abrir a porta da rua, entrou por ela a
comadre.
— Ora graças que o encontro, senhor doido de pedras...
O Leonardo recuou dois passos: naquele momento, assim como lhe aconteceu desde que
saiu de casa de seu pai, nem lhe passava pela idéia que tivesse no mundo uma madrinha, um pai, ou
qualquer parente que fosse. Houve em todos um movimento de admiração e curiosidade, pois
ninguém na casa conhecia a comadre.
Tantas coisas havia feito a boa mulher, que afinal soubera do ninho a que se acolhera o
afilhado, e imediatamente para lá se dirigira. Tendo entrado e dito aquelas primeiras palavras,
queria logo depois seguir com uma grande exortação ao sobrinho, quando, tendo visto as duas
velhas, assentou que era melhor dirigir-se a elas em primeiro lugar. Com efeito dirigiu-se, e
entraram as três em conferência.

Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de AlmeidaOnde histórias criam vida. Descubra agora