Um dia o Leonardo recolhera-se para casa muito mortificado, pois que tendo ido visitar D.
Maria estivera com ela longo tempo sem que Luisinha lhe tivesse aparecido; de maneira que lhe
fora forçoso no fim de algumas horas retirar-se sem vê-la. Quem já teve um namoro, por menos
sério que seja, e que levou um logro destes; quem se viu obrigado a aturar por muito tempo a
conversação de uma velha, tendo de concordar com ela em tudo e por tudo para não incorrer-lhe no
desagrado, só com o fim de trocar com alguém um olhar rápido, um sorriso disfarçado ou outra
coisa assim, e que por fim de contas nem isso mesmo conseguiu, há de concordar que o Leonardo
tinha toda a razão de estar ardendo com o que lhe sucedera, e o desculparia de qualquer
arrebatamento que na ocasião o acometesse. Há espíritos porém de tal maneira serrazinas, que se
divertem em aumentar a irritação alheia, e que quanto mais enfiado pilham um infeliz, tanto mais
gostam de atirar-lhe alfinetadas.
Chiquinha, a amante de Leonardo-Pataca, era de um gênio assim; e depois que moravam
todos juntos, não perdia uma só dessas ocasiões em virtude de antipatia que tinha ao rapaz, para
fustigar de língua ao pobre Leonardo. Este, de um gênio colérico e pouco acostumado a ser
contrariado, ia às nuvens com semelhante coisa; e se em ocasiões ordinárias em que estava de bom
humor eram constantes as brigas em casa, calcule-se o que não faria nas ocasiões como naquela a
que nos referimos, que estivesse cheio de razões, e então por que motivo! Vendo Chiquinha entrar o
Leonardo pela porta adentro de cara amarrada e sem dar-Deus te salve-a ninguém, sorriu-se com
malignidade e concertou a garganta, dizendo entre dentes:
— Melhor cara traga o dia de amanhã.
Leonardo, que percebera o que aquilo queria dizer, fez um gesto arrebatado sentando-se em
uma cadeira, porém com tanta infelicidade, que atirou ao chão uma almofada de renda que se
achava junto dele: com a queda rebentaram-se os fios, e uma porção de bilros rolou pela casa. Por
maior infelicidade ainda a almofada era de Chiquinha, e Chiquinha tinha grandes ciúmes pela sua
almofada. Levantou-se ela do seu lugar já fervendo de raiva; pôs as mãos nas cadeiras, e balançando
a cabeça à medida que falava, exclamou:
— Ora dá-se um desaforo de tamanha grandeza?... vir da rua com os seus azeites,
todo esfogueteado, e de propósito, e muito de propósito, fazer-me o que estão vendo, só para me
desfeitear, como se fosse aqui um dono de casa que pudesse desfeitear a qualquer sem quê nem para
quê!...
Leonardo ouviu tudo sem interromper, procurando sopear a raiva; e enquanto Chiquinha
tomava fôlego, respondeu com voz trêmula e entre cortada:
— Não se meta com a minha vida, porque eu também não me importo com a sua; se
estou com os azeites...
— Ah! bom côvado e meio! atalhou Chiquinha, ah! bordo da nau!... ah! major
Vidigal!...
— Já lhe disse...
— Qual já lhe disse, nem meio já lhe disse!... namorado sem ventura...
Estas palavras fizeram o efeito de uma faísca em um barril de pólvora. Avançou o Leonardo
para Chiquinha com os punhos cerrados e espumando de cólera.
— Se me diz mais meia palavra... perco-lhe o respeito... eu nunca lhe dei confiança;
e apesar de ser a senhora lá o quer que é de meu pai... perco-lhe o respeito...
— Você sempre mostra que tem raça de saloio, disse Chiquinha empertigando-se e
sem recuar um passo.
O Leonardo-Pataca, que estava no interior da casa, acudiu apressado ao barulho, e veio
achar os dois ainda em atitude hostil; vendo o filho quase não quase a desfeitear o adorado objeto de
seus derradeiros afetos, não trepidou em desbaratar com ele.
— Pedaço de mariola... pensas que isto aqui é como a casa de teu padrinho donde
saíste... quero aqui muito respeito a todos... do contrário... se já uma vez te dei um pontapé que te
fiz andar muitos anos por fora, dou-te agora outro que te ponha longe daqui para sempre...
— Nunca pensei, interrompeu Chiquinha dirigindo-se ao Leonardo-Pataca, querendo
afear mais o caso; nunca pensei que na sua companhia se viesse a sofrer semelhante coisa...
— Não faças caso, menina, isto é um pedaço de mariola a quem hei de ensinar; por
causa de ninguém dou-lhe eu uma rodada, se não por tua causa...
— Por causa dela!... atalhou o rapaz; tinha que ver! há de lhe dar bom pago; tão bom
como a cigana...
— Mas nunca lhe hei de dar, acudiu Chiquinha enfurecida com este insulto; nunca
lhe hei de dar o que lhe deu tua mãe...
Com isto o Leonardo-Pataca descoroçoou completamente, que dilúvio de amargas
recordações não fizeram tão poucas palavras cair sobre sua cabeça!
— Espera, maltrapilho, espera que te ensino, exclamou vermelho de cólera; espera
que te ensino...
E entrando repentinamente no quarto da sala, saiu de lá armado com o espadim do uniforme,
e investiu para o filho. Convém dizer que o espadim ia embainhado.
— Não se ponha a perder por minha causa, exclamou Chiquinha agarrando-o pela
camisola de chita com que ele estava vestido.
Era inútil porém o medo de Chiquinha, porque o rapaz, vendo que o negócio ia-se tornando
feio, tendo-lhe ficado um terror instintivo do pai depois daquele pontapé que nunca lhe saíra da
memória, tinha-se posto ao fresco na rua, fechando a rótula sobre si.
— Oh! maroto, disse ainda o Leonardo-Pataca, que te havia desancar...
O Leonardo que fugia por um lado e a comadre que entrava por outro, pois estivera ausente
durante toda a cena. Apenas foi largando a mantilha e viu os dois atores que tinham ficado em cena
ainda nas posições do último quadro, tratou de indagar qual fora o drama que se acabava de
representar.
— Ora foi uma das costumadas do afilhado dos seus amores, respondeu Chiquinha,
ainda não sossegada.
— Porém ia-lhe saindo caro desta vez, acudiu Leonardo-Pataca.
— Pois deveras, atalhou a comadre indignada; pois deveras o compadre estava
armado de espada para dar no rapaz?
— Olá! que levava tão duro como osso!
— Mas então por quê? quantas mortes fez ele de uma vez? onde é que pôs fogo na
casa? Triste coisa é um filho sem mãe!... Aposto que se eu cá estivesse nada havia de suceder!...
— Sim, respondeu Chiquinha, porque logo havia de tomar as dores por ele, segundo
é seu costume. Aí está; muitos filhos têm mãe, e entretanto elas servem-lhes para isto: tomam as
dores por outros, e deixam-nos de banda.
— Qual! histórias! é que tudo leva seu bocado de mau caminho.
— Oh! senhora! atalhou Leonardo-Pataca, se isto vai assim, não há um momento de
sossego nesta casa; acabada uma, começa outra; o que não há de dizer esta vizinhança? Olhem que
isto aqui é casa de um Oficial de Justiça.
— Mas enfim, disse a comadre, onde está o rapaz? onde é que o enterraram?
— Saiu por ali desencabrestado, e tomara que cá não volte.
— Ora está bonito! Oh! mas isto não pode ser assim; correrem com o rapaz de casa
para fora!... Ele não é nenhum desgraçado, pois sempre tem o que lhe deixou seu padrinho.
— Essas e outras é que o puseram a perder.
— Sim, metam-lhe fumaça de rico na cabeça, e hão de ver no que dá.
— Coitado, disse lamentando a comadre, aquele nasceu com má sina.
E tomando de novo a mantilha, saiu com as lágrimas nos olhos em procura de Leonardo.
Ao sair escoravam-na à janela três ou quatro vizinhas.
— Então o que é que fizeram ao moço?
— Que foi isso, Sra. comadre?
— Ele passou por aqui pondo dez léguas por hora.
— Deixe-me, deixe-me, respondeu a comadre, que isto não acaba bem.
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Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de Almeida
ClassiquesA linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance que faz uma crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A história descreve a trajetória do anti-herói Leonardo, endiabrado filho de imigrantes portugueses...