XXVIII - Transtorno

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Enquanto todas estas coisas se passavam, um triste sucesso, e da mais alta importância, veio
alterar a vida de Leonardo, ou transtorná-la mesmo: o compadre caiu gravemente enfermo. A
princípio a moléstia pareceu coisa de pouca monta, e a comadre, que foi a primeira chamada, pre-
tendeu que todo o incômodo desapareceria dentro de dois dias, tomando o doente alguns banhos de
alecrim. Nada porém se conseguiu com a receita; o mal continuou. Recorreram então a um boticário
conhecido da comadre, que juntara ao seu mister, não sabemos se com permissão das leis ou sem
ela, o mister de médico.
Era um velho, filho do Porto, que aqui se viera estabelecer há muitos anos, e que ajuntara no
oficio boas patacas. Apenas chegou e viu o doente declarou que em poucos dias o poria de pé;
bastava que ele tomasse umas pílulas que lhe ia mandar da sua botica: eram um santo remédio,
segundo dizia, mas custavam um bocadinho caro, porém valia a vida de um homem. A comadre
quando ouviu falar em pílulas franziu a testa.
— Pírolas, disse consigo; então o negócio é sério; e eu, que tenho má fé com pírolas;
ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse.
E avermelharam-se-lhe imediatamente os olhos.
O boticário retirou-se levando consigo o Leonardo, que trouxe as pílulas. A comadre,
olhando para elas, abanou a cabeça.
— Ora, disse, eu pensei que ele lhe mandasse dar alguns banhos; cá por mim com
alecrim havia de pô-lo bom.
A comadre tinha razão até certo ponto, pois que no fim de três dias, depois de feitos todos os
preparos religiosos, o compadre deu a alma a Deus.
D. Maria tinha sido chamada nesse mesmo dia, e compareceu com Luisinha e com todo o
seu batalhão de crias; tinham vindo também algumas outras pessoas da vizinhança.
Estavam todos sentados em um grande canapé, na varanda, e conversavam muito entretidos
sobre os objetos mais diversos; algumas achavam mesmo na conversação motivo para boas risadas;
de repente abriu-se a porta do quarto, e a comadre saiu de dentro com o lenço nos olhos, soluçando
desabridamente e repetindo em altos gritos:
— Bem dizia eu que tinha pouca fé nas pírolas; está para ser o primeiro que eu as
veja tomar e que escape... Coitado do compadre... tão boa criatura... nunca me constou que fizesse
mal a ninguém...
Estas palavras da comadre foram o sinal de rebate dado à dor dos que se achavam presentes;
desatou tudo a chorar, e cada qual o mais alto que podia. O Leonardo sofreu um grande choque, e
no meio do seu atordoamento encolheu-se em cima do canapé com a cabeça sobre os joelhos,
chegando-se, naturalmente sem o querer, porque a dor o perturbava, o mais perto possível de
Luisinha. Continuaram os mais no seu coro de pranto dirigidos pela comadre; mas não se
contentavam só com o pranto, soltavam também algumas vezes exclamações em honra do defunto.
— Sempre foi muito bom vizinho, nunca tive escandalos dele, dizia uma.
Era a vizinha que augurava mau fim ao Leonardo, e com quem o compadre brigara por este
motivo umas poucas de vezes.
— Boa alma, dizia D. Maria, boa alma; havia de ser como ele quem quisesse ter boa
alma.
— Eu que lidei com ele, dizia a comadre, é que sei o que ele valia; era uma alma de
santo num corpo de pecador.
— Bom amigo...
— E muito temente a Deus...
Prolongada esta cena por algum tempo, despediram-se algumas pessoas, outras ficaram
ainda. Foi serenando o pranto, e daí a pouco D. Maria, enxugando ainda os olhos, explicava
detalhadamente a uma outra senhora que se achava junto dela a história genealógica de cada uma de
suas crias que se achavam presentes.
Finalmente retiraram-se todos, exceto D. Maria, a sua gente e a comadre, que estava desde
que o compadre adoecera tomando conta da casa.
Aproximou-se a noite; acenderam-se velas junto do defunto; fizeram-se todos os mais
arranjos do costume.
D. Maria e a comadre começaram a conversar, porém baixinho.
— Então, senhora, principiou D. Maria, este homem não havia morrer assim sem ter
feito seu testamento; pois ele não havia de querer deixar no mundo o afilhado ao desamparo para os
ausentes se gozarem do que a ele lhe custou tanto trabalho.
— A mim, respondeu a comadre, nunca me falou em semelhante coisa; mas enfim,
como isso são lá negócios de segredo... talvez.
— Seria bom procurar-se; talvez em alguma gaveta por aí se ache; é impossível que
o defunto não dispusesse sua vida; bem vezes lhe aconselhei eu semelhante coisa.
— Tem razão, D. Maria, eu acho também que deve haver alguma coisa.
E foram as duas tratar de procurar o testamento nas gavetas de uma grande cômoda que
havia no quarto do defunto. Enquanto nisso se ocupavam, Luisinha e Leonardo conversavam, ou
antes cochichavam, como se diz vulgarmente. O que eles se diziam não posso dizê-lo ao leitor,
porque o não sei; sem dúvida a rapariga consolava o rapaz da perda que acabava de sofrer na pessoa
do seu amado padrinho.
Finalmente as duas acharam com efeito um testamento, e ficaram com isso muito satisfeitas.
Voltaram à varanda e surpreenderam os dois no melhor da sua conversa. A comadre
vendo-os sorriu-se, e D. Maria, fazendo sem dúvida a respeito do que estavam eles falando o
mesmo juízo que nós, disse enternecida:
— Ela tem muito bom coração!
— E o dele não é pior, respondeu a comadre.
E acrescentou com intenção:
— Estava um bom casal.
— Oh! senhora, disse D. Maria com ingenuidade, deixe a menina, que ainda é muito
cedo...
— Também não digo já, mas a seu tempo.
D. Maria sorriu-se com um sorriso de que a comadre não desgostou. Mudaram de conversa.
Passou-se a noite; no outro dia saiu o enterro com todas as formalidades do estilo. Depois
disso tratou-se de resolver uma importante questão: para a companhia de quem iria o Leonardo? A
abertura do testamento feita nesse mesmo dia resolveu a questão. O compadre havia instituído a
Leonardo por seu universal herdeiro. A comadre informou de semelhante coisa ao Leonardo-Pataca,
e este apresentou-se para tomar conta de seu filho. Não pareceu o rapaz muito satisfeito com a
graça: não sei como veio-lhe à idéia aquele terrível pontapé que o fizera fugir de casa; além disso
raríssimas vezes vira depois disso a seu pai, e estava completamente desacostumado dele. Não havia
porém outro remédio; foi preciso obedecer e acompanhá-lo para casa, onde encontrou sua pequena
irmã, e quem a pusera no mundo.
O Leonardo-Pataca começou a cuidar no testamento como homem entendido na matéria, e
em pouco tempo deu volta a tudo aquilo.
Cumpre notar que se em vida do compadre corriam boatos que pareciam exagerados a
respeito do que ele possuía, quando morreu pôde verse que esses boatos tinham ainda ficado muito
aquém da verdade, pois deixara ele um bom par de mil cruzados em espécie. Entregues alguns
legados de pouca monta, etc. tudo o mais veio a cair nas mãos do Leonardo-Pataca como herança de
seu filho.
Nos primeiros dias tudo foram flores por casa de Leonardo-Pataca, ainda que, para falar a
verdade, desde a primeira vista não simpatizara muito o moço Leonardo com a cara do objeto dos
novos e últimos cuidados de seu pai.
A comadre assentou que devia substituir ao compadre no amor pelo afilhado, e
determinou-se a vir morar com ele em casa de Leonardo-Pataca; assim ficava também reunida à sua filha, e à sua neta. O Leonardo-Pataca, que era condescendente, esteve pelo caso, e reuniu-se desse
modo à família toda.
Tudo foram flores a princípio, como dissemos; o moço Leonardo e a comadre continuaram
as suas visitas por casa de D. Maria; e digamo-lo já, o rapaz e a rapariga iam pondo as mangas de
fora; verdade seja que José Manuel trabalhava ajudado do seu cego mestre-de-reza, e não perdia
também as esperanças.
Pouco tempo durou o sossego em casa de Leonardo-Pataca; Chiquinha (tal era o nome da
filha da comadre) começou a embirrar com o seu filho adotivo; este que, como dissemos, não
simpatizara muito com ela, começou uma balbúrdia de todos os pecados. Todos os dias travavam-se
por qualquer ponta, e lá ia tudo pelos ares. O Leonardo-Pataca e a comadre faziam o papel de
conciliadores, mas os dois eram ambos altanadíssimos, e muitas vezes o conciliador saía mal
servido, porque aquele a quem não dava razão se revoltava contra ele. Se era por exemplo a
comadre, e dava razão a Leonardo, acudia a filha queixando-se de que sua mãe a abandonava para
tomar o partido do afilhado: se pelo contrário dava razão a Chiquinha, acudia o Leonardo
queixando-se de que desgraçado era o filho sem mãe, pois nunca achava quem lhe desse razão.
Outro tanto acontecia ao Leonardo-Pataca quando se metia a apaziguar os dois.
Os negócios assim iam mal, pois mais dia menos dia haveria grande barulho em casa.

Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antônio de AlmeidaOnde histórias criam vida. Descubra agora