A, então, princesa recém-saída da escravidão não podia recostar a cabeça em seu travesseiro de plumas de ganso e lençóis de puro algodão indiano, sem pensar nos que apenas sobreviviam aos arredores do ostentoso castelo. Os dramas pessoais já não eram os únicos, tampouco os maiores. A noite em claro trouxe-lhe o recordo dos amigos anões e o constrangimento de Zangado por seu analfabetismo. Trouxe-lhe, também, imagens do trágico destino da cunhada. Não, a vida não era perfeita, nem seria ainda que vivida no interior de um castelo. Já de madrugada, quando Cindy começava adormecer, gritos de horror a despertaram. Bramidos ecoavam do pátio do castelo. Homens comunicavam-se com a rudez própria de quem se sacrifica pela segurança alheia. O escuro frio da noite foi rompido por labaredas flamejantes. Cindy olhou cuidadosamente pela janela, sem esperar o terror externo ao quarto. Mal pôde crer no que via. Um dragão atacava furiosamente o castelo. Princy não estava ao seu lado. Ela estava só e precisava proteger-se. Seguindo os próprios instintos, subiu o mais rápido que pôde ao ponto alto do castelo, a torre que guardava o espelho.
-Espelho!
-Sim!
-Um dragão ataca o castelo.
-Sim. Dragões são selvagens.
-Deve haver razão para isso.
-Em verdade, sempre há razões para um ataque aparentemente irracional.
-Como quais?
-Primeiramente, dragões são caçados por esporte. Tal tradição acabou por dizimar a espécie, levando-os à quase absoluta extinção; Segundo, dragões são acorrentados, sob condições mínimas de sobrevivência, frente aos dormitórios de princesas encantadas, enfeitiçadas e sociofóbicas, como fim único de isolá-las; Terceiro, um dragão ferido nunca esquece seu agressor.
-Estaria o dragão ferido?
-É uma longa história...
-Não temos tempo para longas histórias. Apenas responda-me, por favor.
-Sim, Princy o feriu.
-Por quê?
-Princy tem um passado, Cindy. O que inclui antigos amores. Este dragão era o desafio que ele deveria superar para salvar a Bela Adormecida...
-Quem é ela? - perguntou Cindy com a indignação não ter sido, desde sempre, a única em sua vida.
-Ela é a princesa que não pôde despertar. Estava fatalmente presa ao seu mundo infantil.
O ciúme sentido por Cindy deu lugar a um sentimento mais nobre e menos autocentrado.
-Agora, olhes pela vidraça.
Cindy acatou e viu que, lá fora, Princy corria perigo.
-Descerás para lutar com teu marido ou te manterás aqui, no alto, protegendo a ti mesma?
Cindy olhou em sua volta, como a buscar imediata resposta.
-No porão são armazenadas lanças e armaduras de guerreiros. Vá, recolha o que precisa, e faça o que deve ser feito.
Cindy desceu o mais rápido que pôde, pôs-se o elmo, vestiu o colete e a armadura. Agarrou forte a lança, e saiu ao pátio. Princy e os demais cavaleiros lutavam bravamente, ainda que expressasse, na face, o desespero. O dragão aproximava-se mais e mais, o que lhes privava da amplitude de uma visão periférica. Já Cindy, de uma perspectiva distanciada, calculava o melhor ângulo de ataque. Aproximou-se sorrateira do dragão e fincou-lhe a lança no peito, logo abaixo da asa que estava aberta. O dragão cambaleou, deu dois passos atrás, soprou uma última e tímida lavareda, caindo morto.
-Perdão! - sussurrou Cindy. A princesa era, sem dúvida, contra a matança de animais. Mas é um fato que as ideologias acabam suprimidas pelas necessidades mais imediatas, em especial se tratando da sobrevivência de si e dos entes queridos.
-Salvaste-nos! – Sussurrou Princy, antes de cair exausto ao chão. Os fios de seu bigode, expostos pelo respirador do elmo, estavam esturricados.
Já Cindy, acabava de provar a si mesma que não era uma adolescente brincando de ser mulher. Ela havia crescido.
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Pelo Andar da Carruagem - O Lado Oculto dos Contos de Fadas
FantasíaPelo Andar da Carruagem é uma releitura de contos clássicos de fadas, cujo ápice NÃO se dá no casamento entre Cindy e o príncipe, mas nas subsequentes descobertas que ela faz de si mesma.