A Revolução

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 Verão, aquela estação cujo nome remete-nos a promessa ameaçadora, com um adeus despeitado da prima Vera a ir-se, levando consigo o frescor do outono/inverno passado em hemisfério norte. Sentia-se no ar uma alegria convidativa, como se a vida, em sua diversidade de expressões e elementos, estivesse a sussurrar 'viva!'. O sonar das águas correntes era um convite a mergulho no rio, e o colorido radiante das flores, um convite à contemplação. O canto dos pássaros parecia alegremente ritmado, e o voo das borboletas, mais livre e atrevido. Cindy sentia-se plena em sua nova vida, embora não pudesse ignorar os problemas periféricos do castelo. Numa bela tarde, tomando o chá das cinco com Princy, não pôde ocultar suas inquietações.

-O que houve Cindy? Tens a testa franzida todo o dia.

-Necessito teu apoio para um projeto social.

-Convença-me!

-Bem, desejo ensinar os pobres campesinos a ler e escrever. Ao menos os que o desejarem.

-Algum pupilo inscrito?

-Creio haver alguns candidatos.

-Do que necessitas?

-Um espaço físico, geograficamente acessível, e devidamente mobiliado. Necessitarei escolta, e alimentação diária aos pupilos.

-Quais vantagens terá o Reino com tal medida?

-Um povo pensante. Não queiramos sucumbir velhos e atrasados diante dos avanços progressistas. São tempos Iluministas.

-Farei o possível.

-Assim sendo, devo buscar novos aprendizes?

-Vai escoltada. Nem todos verão com bons olhos tuas ideologias.

Cindy saiu a convencer crianças, adolescentes e os respectivos pais sobre a importância da educação. Alguns prontamente se interessaram. Outros se deixaram convencer pela oportunidade de comer 'o pão nosso de cada dia' na escola. Uns poucos choravam comovidos pelo vislumbre de aprender a ler os mistérios contidos nos livros. Eram gerações e vidas inteiras à margem das escrituras. Mas, havia quem resistisse à educação. Dentre os quais, fanáticos religiosos, avessos à mais simples ciência; os doutrinados pela ideologia de que só o trabalho dignifica o homem; os iludidos pelo valor imediato do ouro e da prata; e os extremamente miseráveis material, cultural e moralmente. Destes, Cindy ouvia frases feitas como: 'de boas intenções, o inferno está cheio'.

 O título de princesa conferia-lhe alguns benefícios, assim que não tardou mais que poucas semanas para que a escola estivesse pronta. Ao primeiro dia de aula, estavam presentes crianças, jovens, adultos e anciãos. Dentre eles, um aluno muito especial: Zangado. Dia a dia, o número de pupilos crescia, de modo a tornar-se necessária a convocatória de novos educadores. Em seguida, a necessidade de arrecadar livros. E, afinal, a ampliação física da estrutura escolar. O resultado do trabalho educacional era evidente nos aprendizes, especialmente em Zangado. As fases pelas quais havia passado, eram visíveis. A princípio, ele estava tímido e atento às aulas. A seguir, participativo e colaborativo com os colegas. Mas, em algum momento, Zangado deixou de ser assíduo. E quando ia às aulas, contestava muitas teorias e falava em revolução. Ao final de um dia de estudos, desabafou:

-Professora Cindy, preciso falar-lhe em particular. É urgente!

-Fale, Zangado.

-Tu deves fugir e salvar a própria pele.

-Que dizes?

-Haverá uma grande revolução. Os muitos explorados da sociedade cansaram-se dos privilégios de poucos. E dentre os poucos, está a realeza. Fuja, Cindy, antes que seja tarde demais.

 Cindy quedou-se em silêncio, pois já havia ouvido rumores.

-Mas não digas a ninguém que falamos sobre isso ou serei eu decapitado. Salva-te, Cindy. Devo ir. Adeus! Já não retornarei. E não te esqueças: nunca tivemos essa conversa.

 Cindy estava atônita pelas confirmações. Já no castelo, Princy a aguardava sentado na varanda, com uma taça de chá inglês na mão, e rugas de preocupação na testa. 

-Bem que chegaste.

 Cindy já previa o tema da conversa.

-Virão tempos difíceis. Há rumores de uma revolução...

-Sim, fui informada.

-Como?

-Passarinho me contou.

-Podemos escolher entre 'partir e viver', ainda que dando vazão a chacotas e garantindo-nos a alcunha 'covardes'; ou devemos 'lutar e morrer' para, talvez, sermos lembrados em algum livro de história como as altezas decapitadas por burgueses revolucionários.

-Bem, optar por viver nunca foi prova de covardia. Ao contrário, a vida exige-nos coragem. 

-Considere que nosso estilo de vida mudará radicalmente, Cindy.

-Já me acostumei às desorientações dos ventos. "Vão-se os anéis, ficam os dedos".

-Não poderia haver, em nenhum reino encantado, princesa como você.

 Então, o casal reuniu o que havia de mais importante, valioso e portátil, e partiu. Mas não antes de Cindy despedir-se do espelho.

-Espelho!

-Aqui estou Alteza.

-Eu, Princy e alguns conselheiros e serviçais de confiança fugiremos.

-Disso eu já sabia...

-Você sabe de tudo, não é mesmo?

-Tudo é muito até para mim, princesa Cindy. Traçaram algum roteiro?

-Estamos indecisos.

-Sugiro que se vaiam às Américas. Mais especificamente, ao denominado 'quinto dos infernos'.

-Ahaha... – ainda que tentassem manter a gravidade adequada ao momento, Cindy e o espelho não puderam conter o riso.

-Onde seria isso?- perguntou Cindy a chorar de rir.

-Uma colônia chamada Brasil.

-Considerarei a sugestão. A ti, o que passará?

-Bem, talvez um azarado me quebre em um ato de protesto, talvez alguém se apaixone por mim ao olhar a própria imagem. Quem saberá?

-Adeus, foi-me honroso conhecer-te.

-Sim, eu sei... -o espelho podia gabar-se de várias de suas qualidades, excluindo destas a modéstia. -Mas, não maior que a minha, querida Cindy. -o espelho também sabia refletir gentileza. -Adeus!

Pelo Andar da Carruagem - O Lado Oculto dos Contos de FadasOnde histórias criam vida. Descubra agora