Contrato

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Quando nascemos assinamos logo um contrato com a morte. Porque é que depois fazemos todo o possível por não cumpri-lo?

Vergílio Ferreira

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A noite chegou como quem toma o que é seu por direito, consumindo toda a luz e deixando tudo nas trevas novamente. Eu não fazia idéia de que dia da semana estávamos, mas o parque tinha estado tão cheio durante o dia que era até estranho vê-lo tão deserto à noite. A tentação de sair da janela e ir conhecê-lo era grande, mas eu estava tão aterrorizada com os últimos acontecimentos que passei os últimos dias trancada em meu quarto.

Ainda não era muito tarde quando uma moça que eu nunca tinha visto entrou no quarto carregando uma bandeja. Ela era linda! Seu cabelo cacheado ia até a altura dos ombros e não estava amarrado como o das outras enfermeiras, sua altura mesmo com um belo salto alto era ainda menor do que a minha e sua pele negra me dava inveja por não ver nenhuma imperfeição ou rugas. Ela sorria para mim e seu olhar estava cravado no meu, constatando que sim, ela me via.

— Aqui está o seu jantar Camille! — Sua voz transparecia gentileza e suavidade.

— Como assim? Pensei que eu não pudesse comer coisas — Olhei para o que parecia uma sopa de tomate e logo vi um leve brilho ao fundo — Vocês esconderam aquele remédio estranho nesta sopa, não é?

— O que você está falando? — A moça que parecia ter uns vinte anos colocou as mãos na cintura e fez uma cara muito hilária — Nossa! Pensei que ao menos tomaria uma colherada antes de descobrir. O doutor Gabriel vai me dar aquela bronca.

Mesmo sabendo que tinha aquele remédio dentro, fazia um tempo que não comia qualquer coisa, apesar de estranhamente não sentir fome eu estava louca para botar algo para dentro. Quando dei a primeira colherada, sob o olhar atento da moça, notei que não tinha qualquer gosto e larguei a colher no prato.

— Não tem sabor! Vocês só podem estar de brincadeira — fiz uma careta mostrando meu desgosto.

— Como assim não tem gosto? Camille você precisa ingerir esse remédio para se curar. Que gosto você queria que tivesse?

— Minha mãe sempre fazia canja de galinha para mim quando estava doente. Seria muito bom sentir esse gosto novamente.

— Camille, experimente novamente a sopa agora.

— Pra quê?

— Apenas faça isso. OK?

Mesmo sem entender peguei mais um pouco da sopa e para a minha surpresa agora tinha um sabor muito parecido com a canja da minha mãe.

— Moça, o que aconteceu? Isso é muito louco!

— Meu nome é Beatriz Ferreira Fonseca da Silva, mas pode me chamar apenas de Bia.

— Poderia me responder, por favor? — Quem hoje em dia sai por aí dizendo seu nome completo?

— Hum... O pensamento é algo poderoso e incompreendido. Pode fazer milagres neste plano.

— Você poderia traduzir?

— Se você quer o gosto de frango, pode ser que a sopa mude seu gosto para te dar um presente.

Eu não sei se a sopa poderia fazer qualquer coisa a não que não fosse ser ingerida, mas percebi que tirar informações dela seria mais difícil do que do doutor Gabriel. Eu estava com tanta vontade de comer que desisti da resposta e limpei o prato rapidamente.

— Muito bom! Agora venha comigo. Quero que veja algo — A Bia saiu do quarto rapidamente e tive que correr para não perder o seu rastro.

Pela primeira vez eu fui ao primeiro andar e estávamos pelo o que parecia ser a recepção do hospital, algumas poucas pessoas aguardavam sentadas em bancos de plástico super desconfortáveis. Algo parecia fora do normal, algo me incomodava, mas eu não sabia o que era até uma mulher de meia idade entrar pela porta trazendo junto uma fumaça vermelha como o fogo, inclusive senti um forte calor vindo de sua direção, como se estivesse próxima a uma fogueira.

— Você sabe o que é isso Camille? Ali no cangote daquela mulher? Consegue ver algo além da névoa?

— Eu só vejo uma fumaça vermelha, nada mais! O que é isso? Seria como os vampiros que o doutor Gabriel mencionou?

— O remédio está fazendo efeito. Sim! Este é um vampiro e apesar de estar no território daquela que vive encontrando com você, ele teve autorização dela para entrar aqui.

— Ela é mais forte do que este? O que isso tem a ver com o remédio?

— A vampira que você viu a alguns dias não é mais forte do que este que está na sua frente, ao contrário, ela é mais fraca, mas possui a sua mente quase intacta ainda enquanto este aí é um monstro que age só por instintos. Por você não poder ver a sua fisionomia é um dos efeitos colaterais do remédio.

Eu tentei ir em direção à mulher para tentar avisá-la, mas a Bia segurou o meu braço evitando que eu sequer saísse do lugar

— Este vampiro não tem um território, ele fecha contratos com as pessoas que solicitam. Dessa forma ele pode sugar um pouco da energia vital das pessoas sem que elas percam imediatamente suas vidas. Um dia elas terão algum problema grave de saúde devido a pouca energia vital.

— Como uma pessoa pode concordar com isso?

— Não é uma coisa racional! Muita gente materialista pede para ganhar coisas, outras pedem para saciarem seus vícios pecaminosos e até mesmo quando solicitam uma cura podem estar chamando um monstro desses sem perceberem. De fato essa classe de vampiros pode conceder alguns pedidos e até podem aparecer para as pessoas sob qualquer imagem para fingirem ser bonzinhos.

— Que crueldade! Precisamos fazer algo. Deixe-me pelo menos avisar aquela senhora.

— Provavelmente ela não acreditará em você e até mesmo que acredite nunca irá contra seu "anjo" ou qualquer coisa que imagine estar ao seu lado. Se você pudesse vê-lo com seu verdadeiro rosto teria medo até de estar no mesmo cômodo que ele.

— Porque está me mostrando isso, Bia?

— Você precisa parar de se intrometer na vida desses seres, não fará diferença alguma com a sua força atual e pode te enfraquecer a tal ponto de você nunca se recuperar. Você quer ficar mais alguns anos em coma?

— Eu não sabia que poderia ser tão ruim assim! Pensei que poderia ajudar as pessoas que estavam sendo atacadas por esses monstros.

— Eu sei que é ruim ver essas coisas acontecerem na nossa frente, mas estamos de mãos atadas, tanto você quanto nós os seus médicos.

Voltei para o meu quarto com muito mais dúvidas do que quando saí, qual não foi a minha surpresa quando vi a sombra negra sentada no meu sofá novamente. Dessa vez eu lavei as minhas mãos na pia e sentei ao seu lado. Não vou mentir dizendo que não tinha medo, eu estava apavorada, mas de alguma forma eu sabia que ela não queria me fazer algum mal.

— Você não pode ser tão má assim! ao contrário de muita gente por aí, você me dá um pouco de atenção. Você é uma das únicas pess... pessoas que me visitam — Eu olhava para aquela fumaça negra tentando imaginar a sua feição.

Quando eu achava que estava superando meu medo e fazendo amizade com ela, uma mão esquelética saiu do meio da fumaça e agarrou o meu pulso com força. Com uma voz metálica e alta ela me respondeu

— QUAL SERÁ O GOSTO DA SUA CARNE? AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA

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Antes de AcordarOnde histórias criam vida. Descubra agora