☼ ☽ Número Dois ☽☼

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Era mais de dez da noite quando eu me vi quase em casa. O peso da minha bolsa e da sacola com três livros já me incomodava, eu me sentia suja e com fome.

E qual não foi minha surpresa ao ver o famigerado e perturbador ex, vulgo Mateus Arantes, ali na minha frente, parado em frente a porta da minha casa?

Ele estava todo arrumado. Aquilo me incomodava mais do que a presença dele em si. Por ter passado tantos momentos juntos, meu corpo não estranhava sua aparição, mesmo meses após o término. Se tudo dependesse do meu corpo, a única ação que aconteceria ali seria um abraço.

Bom, eu não tive medo de abraçá-lo quando o vi todo de preto naquela segunda-feira horrenda. Na verdade, foi tudo que consegui fazer, e me acolher foi tudo que ele conseguiu também. O Universo estava e não estava fora de equilíbrio naquele momento em que nós dois percebemos que, juntos ou não, ainda éramos o porto-seguro um do outro. Foi dolorosamente confortante.

— Boa noite, Lis. — Arantes cumprimentou, devidamente vestido em uma jaqueta de couro que eu adorava.

Só que tava calor demais pra tudo aquilo.

— Testemunhas de Jeová geralmente aparecem pela manhã. — eu avisei. — O que você quer?

Eu o vi respirar fundo, proibido de responder qualquer provocação minha.... pro próprio bem dele. E dela. E de todo o impacto que um abraço num velório foi capaz de fazer.

"Foi apenas o luto", eu murmurei para ela ao justificar a intensidade das coisas. Eu tinha que justificar daquela vez porque daquela vez eu não era a culpada, eu era a vítima.

"Eu sei", ela respondeu, a voz baixa e os olhos no chão, do jeitinho que sempre estiveram desde que decidiu que estava apaixonada pelo meu então namorado. "Não achei nada demais, eu prometo."

. Amanda também tinha prometido que era minha melhor amiga, mas me abandonou depois do caos que foram os últimos dias do nosso ensino médio, prontamente me ignorou quando se viu entre a cruz e a espada porque duas de suas amigas diziam coisas diferentes da mesma situação. Ela sabia quem já tinha mentido antes... e não era eu.

Mas assim, quando você já está apaixonada pelo namorado da sua amiga, é melhor mesmo fazer com que ela se sinta culpada pelo afastamento de vocês, do contrário você é só uma talarica, e não uma ex amiga com passado complicado. Claro que eu só fui entender isso algumas semanas depois quando o Mateus terminou comigo porque queria ficar com ela. Ah, sim, foi esclarecedor. Eu superei a Amanda rapidinho depois daquilo.

O problema mesmo foi superar ele.

— Eu falei sério antes. — Mateus começou a falar, os braços cruzados denotando que não era nenhuma brincadeira sem graça dele. — Quero ficar com o caderno de trechos.

— É meu caderno. — respondi, cansada. — E eu não vou brigar com você para tê-lo. É simplesmente meu.

— A maioria dos trechos que estão lá você descobriu vendo filmes comigo. — ele justificou, manso. — Eu também ajudei a escrever.

Bufei.

— Ele existia antes mesmo de nós existirmos, Mateus.

— Eu sei. Mas...

Nós nos enrolamos numa discussão sem nexo e desconfortável.

Eu me senti tão mal durante aqueles poucos minutos. Só engolindo e engolindo dor, engolindo coisas que eu nunca disse pra ele. Eu podia vomitar uma série de lamentações muito facilmente, mas não o fiz.

Eu só senti que ele já não merecia me conhecer como um dia conheceu.

Não que sentir isso tenha sido aliviador. Foi péssimo, na verdade. Apertou e queimou meu peito até eu não conseguir mais pensar no que falar.

Eu o amei demais por muito tempo, e nunca soube se conseguiria viver uma vida em que essa não fosse uma condição eterna atrelada a mim.

— Desculpa, eu preciso entrar. — eu pedi com a voz falhando, a postura falhando... tudo falhando.

Ele percebeu pelo menos um pouco do meu estado e, ainda bem, não me impediu.

— Eu quero o caderninho porque é uma parte de você que eu ainda tenho. — ele disse, por último, quando eu estava fechando a porta. — E eu não quero abrir mão.

Eu bati a porta, atordoada.

Doía tanto.

Acho que paralisei ali mesmo, olhando a esmo para uma fotografia de família no escuro da sala.

Um Conto Não Depressivo Sobre DepressãoOnde histórias criam vida. Descubra agora