☼ ☽ Número Nove ☽☼

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Oitenta e três, quase oitenta e quatro dias. E então mais sessenta dias.

Vê, eu passei oitenta e três dias evitando toda a merda que aconteceu na minha vida. Toda a merda, e não era pouca.

Só comecei a contar mesmo quando veio o dia seguinte ao velório do meu pai e eu percebi que não era um pesadelo, que era só a minha vida. Ainda dói pensar sobre isso, especialmente quando me dou conta de que mesmo antes de perdê-lo eu já estava perdida em mim. Eu poderia ter aproveitado melhor todo o tempo e todas as oportunidades que tivemos juntos, mas estava lá esquentando a cabeça e o coração com problemas egoístas.

E sobre problemas egoístas... eles também merecem atenção. Deus sabe que merecem.

Foi na primeira vez em que eu disse o nome do Mateus em voz alta depois que terminamos que eu entendi. Não na hora, ao lado do Lucas, mas quando cheguei em casa querendo dormir e nunca mais acordar. Eu tinha medo de dizer o nome dele porque não queria culpá-lo pelo fim do nosso relacionamento, já que a culpa era compartilhada. Eu o vi se apaixonar, aos poucos, por uma das nossas amigas.

Eu assisti tudo acontecer e fui passiva. Eu não assumi uma posição, tampouco o impedi quando começou a mentir sobre onde ia. Eu sabia que ele nunca me trairia porque eu era, apesar de tudo, a melhor amiga dele. Então eu só deixava ele ter outra amiga, mesmo com a sensação de que, na verdade, ele estava arranjando um outro amor. Mas eu fui negligente, achei que todas as coisas passariam e o fim só se resumiria a nós dois. Então, quando ele chegou em mim e disse, chorando mais do que jamais vi, que tinha se apaixonado por outra pessoa... Eu o deixei ir.

Com tudo que estava acontecendo na minha vida, eu já não tinha força pra lutar por ninguém. E esse não era o tipo de guerra que a gente vence a batalha final e tudo fica bem. Quando a gente ama alguém, tem que vencer batalhas diárias pra fazer esse amor sobreviver. Foi uma lição que eu aprendi só depois que o perdi, infelizmente.

À partir do dia oitenta e quatro, eu abandonei o hábito de no mínimo uma dose de tequila por dia. Aquilo nem era bom, no fim das contas. E também abandonei a mania de rejeitar convites dos meus amigos, como o Kauê, só porque eles também eram amigos do Mateus. E parei de evitar pensar em toda a minha história confusa, porque, de certa forma, isso só me fazia pensar mais nela.

Tudo já tinha acontecido, já tinha passado. Não havia motivo pra remoer as coisas se eu fosse tomar uma atitude quanto a elas. A única ação possível era seguir em frente, algo que sempre me pareceu óbvio, mas nunca pareceu possível.

Até Lucas George aparecer e inundar minha vida com leveza e alegria.

Assim os próximos sessenta dias começaram. E no fim, quando eu finalmente chorei, vi como eu tinha sido nociva para mim mesma nos últimos tempos. Tudo havia me machucado intensamente, é verdade, mas nada me dilacerou mais do que eu mesma.

Às vezes eu me pergunto o que teria sobrado de mim se eu continuasse nesse ritmo. E então eu me repreendo, porque não importa.

Ainda bem que eu tenho minha mãe. Ainda bem que eu tenho o Kauê. Ainda bem que eu tenho o Lucas. Ainda bem que eu ainda me tenho, uma realização que eu nem sabia ser verdade até pouquíssimo tempo atrás.

— Adoro essa carinha pensativa.

Acordei de um devaneio, encontrando um Lucas me encarando feito um verdadeiro bobo, com um cotovelo no balcão e uma mão no queixo.

— Você adora tudo em mim. Você me ama.

— Não, não. — ele interrompeu. — Eu nem te conheço direito.

— Tá. — ironizei, rindo.

— É sério. — Lucas deixou a postura de admirador e se endireitou. — Faz três semanas que eu estou vendo uma Elisa completamente diferente da que conheci antes. Eu estava me apaixonando pela outra Elisa, mas talvez seja porque eu tenho uma queda por garotas problemáticas. E agora...

— Agora eu pareço bem resolvida demais pra você.

— Infelizmente. — ele fez um biquinho, como se realmente lamentasse. Eu tive que rir. — E felizmente. Sério, Lis.

Eu desfiz minha cara de diversão.

ele me chamava de Lis. Eu não conseguia esquecer isso. Eu não conseguia esquecer um monte de coisa.

— Lis...a. Lisa. — Lucas corrigiu, sem graça. Eu tentei sorrir.

Mesmo que eu por vezes me sentisse incompleta, como se realmente fosse possível que alguém tivesse levado uma parte de mim, percebi que também coletei muitas coisas de muitas outras pessoas, e no fim das contas é isso que constitui a vida: sempre estamos plantando e colhendo por aí, criaturas sociais como somos.

— Pode me chamar de Lis. — eu disse, reivindicando pra mim meu apelido favorito.

— Mesmo?

Olhei, por um momento, pro movimento no café, as luzes baixas e toda a decoração boho chic que era predominante nos estabelecimentos do centro de São Paulo. Estávamos esperando Kauê, Larissa, Júlio e Daniel pra decidirmos o que íamos fazer naquela noite.

— Mesmo. — eu decidi dizer, convicta.

É verdade, eu não conseguia esquecer. Jamais esqueceria. A sombra do Mateus sempre existiria em mim, e uma coisa que aprendi de uns tempos pra cá é que negar é como prolongar a dor.

Não vale a pena.

Okay. — Lucas colocou uma mão na minha bochecha, apertando levemente em uma carícia. — Talvez eu crie um interesse em garotas bem resolvidas também. Você é encantadora.

— Ah, eu que sou? — também coloquei a mão na bochecha dele, sentindo uma covinha se formar bem debaixo do meu polegar. — Olha só pra você!

Jeez. — ele riu, se afastando. — Fomos feitos pra nos gabar um pro outro.

— Acho que a friendzone é o nosso lugar.

— Quem diria? — ouvi a voz do Kauê gritar no meio do café. — Só porque seriam um casalzão da porra.

— Queria. — Júlio se fez triste, aproximando-se de mim para me abraçar de lado. — Mas tem eu, bem disponível aqui. Só pra avisar.

— Desistam. A Elisa não precisa de ninguém. — Larissa disse, risonha, parecendo mais simpática comigo do que jamais visto. Tem sido assim ultimamente, na verdade, cada dia mais. Eu gosto. — Pelo menos de nenhum de vocês.

— Ah, eu preciso sim! — formei uma carinha triste. — Quem mais vai pagar meus Mcflurries? E minhas bebidas?

— Mal-acostumada. — Lucas murmurou, me empurrando.

Eu apenas abri um sorriso de falsa inocente e disse pra eles todos que estava na hora de ir. E que eles pagariam meu jantar naquele dia em questão também.

Com alguns xingamentos e empurrões a mais, finalmente saímos dali.

Era só mais uma noite de sábado.

Um Conto Não Depressivo Sobre DepressãoOnde histórias criam vida. Descubra agora