☼ ☽ CARA │Número Um ☽☼

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CARA


Oitenta e três dias.

Oitenta e três dias, sete horas e trinta minutos de sobriedade.

E com isso quero dizer que fazem oitenta e três dias, sete horas e trinta (e um, agora) minutos que eu me considero oficialmente uma alcoólatra.

Então esse cara da minha turma, o Júlio, convidou todo mundo pra comemorar o fim do segundo semestre. Afinal, sobreviver a um ano com outros noventa alunos cheios de vontade de provar para os professores que já são praticamente advogados pode ser algo muito cansativo. Não pra mim, no caso. Acho que fiquei fora do ar 70% do tempo, só me atentando realmente ao Direito quando tinha alguma prova vindo aí. Eu tinha esse problema de não conseguir me concentrar nas coisas que gosto.

Deixei as piadas idiotas da Aline (eu poderia dizer que ela é minha amiga, mas eu sou chata com nomeações) e me dirigi ao bar improvisado do apartamento, pedindo uma dose de tequila ao próprio Júlio.

— Sério? — ele disse. E eu observei, entediada, uma mecha de seu cabelo cair.

— Seríssimo, por que está demorando tanto? — brinquei, fingindo que gostava dele ao ponto de não recriminá-lo de volta, aquele olhar conservador de "ela está bebendo tequila pura e sozinha há mais de vinte minutos". — É o último de hoje.

— Ainda são onze horas.

— À partir da meia-noite é outro dia, não é mesmo?

Júlio riu, negando com a cabeça, ainda desacreditado que uma das nerds reclusas da sala estava na sala de seu apartamento.

É, eu não sou uma nerd e nem curto muito a reclusão. Tudo se trata desse papel que eu adotei desde que entrei na faculdade e, queira Deus, não tem ninguém que duvide da minha chatíssima personalidade.

— Você é divertida, Bonifácio. Devia sair com a gente mais vezes. — ele entregou o copo de plástico pela metade pra mim. — Só, por favor, coma um salgadinho daqui a pouco. Sem dar PT nos meus tapetes.

— Você não foi muito prudente deixando eles aí, cara. — avisei, me afastando. Pude ouvir sua risada conforme dois idiotas estavam brigando por qual música colocar pra tocar agora.

Bem, eu só estava grata pelo sertanejo universitário ter acabado.

Mexi o copo, observando o líquido levemente amarelado. Eu odiava tequila.

Por isso virei tudo de uma vez.

E fiz a velha careta de sempre, sentindo meu interior derreter.

Hey. — uma voz masculina e descontraída soou atrás de mim. Eu me virei, encontrando um cara sentado no braço do sofá, levantando um copo na minha direção. — God, you look like a thirteen year old girl.

Excuse me?

— Merda. — ele disse, com uma boa dose de sotaque. — Me desculpa, eu não quis ofender você e...

— Não, tudo bem. Você quis fazer um comentário ofensivo, só não pensou que eu fosse entender o que você estava dizendo. — dei por ombros, me aproximando um passo.

— Basicamente. — ele, bem bonito por sinal, deu um sorriso torto. — Meu nome é Lucas George.

— E claramente não é osasquense. — falei e arqueei uma sobrancelha, trocando o pé em que me apoiar. — Você tem um sobrenome bem gozado.

— Eu tenho? — George riu nasalmente, curioso.

— Bem, ele poderia ser o nome de qualquer cara aqui. Ou lá, em qualquer que seja sua terra natal. Seu sobrenome é um nome, cara.

— Eu... — agora ele ria de verdade, com direito a pender a cabeça para trás.

Eu observei sua camisa vinho, desabotoada nos primeiros botões, e tive vontade de descer meu olhar.

Pigarreei.

— E é triste, também. Poderia ser George Lucas, porque aí seus pais seriam potencialmente cinéfilos como eu, mas é ao contrário... Eu não sei.

— O que você não sabe?

— Eu não sei se vou me acostumar com seu nome.

Lucas George assentiu com a cabeça, bebendo de sua (poderia ser minha) tequila.

— E eu, que nem sei seu nome? — ele retrucou, sagaz.

— Não, nem vem.

— Como assim 'nem vem'?

— Nem vem com esse tom de lamentação. De longe, meu nome não importa. Você quer me pegar, eu sinto.

— Oh. — a feição de Lucas George ganhou surpresa. — Bom, você é pegável.

— 'Cê provavelmente só gosta do tipo brasileiro. — comentei, pegando seu copo pra mim. Encaixei no meu, já vazio, e bebi um gole pequeno do conteúdo. Passado o ardor na garganta, abri um grande sorriso para o gringo a minha frente: — Já te aviso, meu vestido é meio bufante, por isso parece que eu tenho bunda. Eu não tenho.

— Eu acredito em você — George começou, risonho. —, mas ainda quero dançar. A música finalmente melhorou.

Era verdade. Agora, não tão ensurdecedoramente, algum hit do The Chainsmokers tocava (era sempre difícil diferenciar um do outro).

Estreitei os olhos para Lucas George.

— Eu posso aceitar... caso você pegue mais tequila pra nós.

— Qual é a sua com tequila, huh?

— Eu não suporto o gosto.

— Masoquista.

— Por que você fala português tão bem, hein? — eu fiquei confusa.

Lucas George se levantou, expondo sua altura até então não tão chocante mas agora absurdamente intimidadora, e eu só passei a me sentir uma formiguinha. Odiava caras altos.

— Minha mãe é brasileira. Logo, eu também.

— Agora entendi a do nome esquisito. — revelei, realizada.

Ele não riu, mas vi um traço de sorriso em seu rosto quando ele inadvertidamente pegou meu braço e saiu me arrastando de volta para o bar.

— Dessa vez queremos Jurupinga, Julio. — Lucas anunciou, o nome do Júlio sendo dito de um jeito bem latino e genérico. Me contive de rolar os olhos.

O dono do apartamento riu, providenciando nossos copos.

— Deixe-me ver... Espanhol, italiano e talvez você também arranhe no alemão. Estou certa? — arrisquei, encostando a lateral do corpo no balcão do bar.

— Espanhol, sim. Alemão, um pouco. Italiano... quem me dera.

— Um bebê poliglota.

— O que disse? — Lucas George perguntou, rindo. Apanhei a minha Jurupinga e bebi um pouco, sentindo o gostinho doce me queimar levemente.

— Nada. — foi minha vez de puxá-lo pelo braço. Oh, e que braço. — Vem, precisamos dançar antes que o sertanejo recomece.

Um Conto Não Depressivo Sobre DepressãoOnde histórias criam vida. Descubra agora