Capítulo 40

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Narração de Álvaro

       A noite estava fria e úmida. A alcateia andava inquieta pelas altas montanhas que estávamos a alguns dias. Sair do esconderijo tinha sido uma decisão importante. Há anos estávamos escondidos, há anos nenhum ser sabia nosso paradeiro, nem vampiros nem nada. Estávamos mortos, sumidos, longe de tudo e de todos. Então ela apareceu. A mistura das raças, a primeira híbrida da história... minha neta... O dia em que a lenda dela chegou até nós, foi como retornar a antigamente, à época em que lobisomens e vampiros lutavam por territórios e direitos. À época em que nós, lobos, quase fomos extintos. Desde a última disputa entre as duas raças mais importantes do mundo sobrenatural, nosso povo estava escondido, algumas alcateias viviam de lugar em lugar, outras, tentavam se misturar com humanos, vivendo uma vida quase normal, mas sofrendo com a maldição na lua cheia. Nossa alcateia vivia escondida, longe de olhares curiosos. Nossas crianças eram treinadas desde cedo para lutar, preparadas para enfrentar futuras guerras, as quais os humanos nem imaginavam existir. Nossa vitória não foi alcançada por tão pouco... Se não fosse pela intromissão deles, a Legião dos Magos, eles apoiaram Kian, e seus poderes conseguiram nos derrotar. Dezenas e dezenas de nós foram mortos, mas a maioria conseguiu fugir, e aqui estamos, reunidos dentro do mato, para que ninguém nos descubra.  Agora os dias se passam rápidos e tensos, as cobranças vem a cada instante do dia, eles querem saber o que vou fazer. Meu filho, Paul, meu primogênito, escolheu uma humana a sua família, quebrou o trato que mantinha a conferência dos lobisomens unida, depois de nossa derrota, conseguimos propor um acordo, nós sumiríamos, nunca mais íamos entrar em assuntos de vampiros, era isso ou deixar que fôssemos extintos. Muitos vampiros tinham sido mortos, e se não fosse os Magos teríamos ganhado, mas eu não tinha escolha a não ser aceitar, meu sangue foi depositado sobre o papel, minha palavra de honra, nenhum lobisomem iria quebrar o juramento e por anos tudo foi cumprido, até que meu próprio filho o quebrou... Certo dia, ele pedira permissão para sair, sempre foi um rapaz rebelde, não aceitava as condições em que vivíamos, invejava os humanos, a liberdade que tinham e naquele dia insistira tanto para sair que eu acabei dando a permissão. Ele se fora e a encontrou, e junto com ela, Kian. Foi a primeira vez que ele se transformou, a primeira vez que ele tinha ficado perto de um vampiro. Ele conseguiu enfrentar Kian, mas saiu ferido também. Voltou para casa e trouxe consigo a garota. Ela era realmente muito bonita, não me admirou que um vampiro como Kian a fizesse de caça, mas não era assunto nosso. Ela parecia transtornada, sem acreditar no que via, e se agarrava como um bebê ao braço de Paul.  Meu filho me encarava enquanto contava tudo o que tinha acontecido, e nesse tempo a moça apenas choramingava ao seu lado. Depois que contou tudo, ele me olhou esperando uma resposta. Observei meu filho, ele tinha o jeito teimoso de sua mãe, e o mesmo gosto aventureiro que me dava nos nervos as vezes. Ele arqueou as sobrancelhas em busca da resposta, mas o que eu poderia dizer? Ela era presa de um vampiro e não podíamos fazer nada, era o acordo.
       - Então? - ele sussurrou - Ela vai poder ficar aqui?
       - Ficar aqui? - perguntei perplexo - Você está louco?
       - Não pode deixá la sozinha. Olhe para ela, está sem ninguém no mundo, e aquele desgraçado a quer de toda maneira, ela estará a salvo na alcateia.
       - Kian sabe que foi um lobisomem que a defendeu, ele vai vim até mim, eu sou o Alfa, eu tomo as decisões. Você quer começar uma guerra entre nós novamente?  Já não basta tantos irmãos mortos? Nosso número está resumido, não temos condições para uma luta, ainda mais por causa de uma humana!
       - Eu não posso deixá la, eu a amo! - ele gritou e a puxou para perto de si, ela enterrou o rosto em seu peito e soluçou.
       - Amor? Você por acaso sabe o que é isso? Uma criança que mal saiu das fraudas falando de amor? Ela não é problema nosso! Você deve entregá la antes que a fúria de Kian caía sobre nós! Não vou deixar que nossa alcateia seja exterminada por causa de uma paixão adolescente!
      - Ela não vai sair de perto de mim. - ele disse me desafiando, senti meu corpo começar a esquentar.
       - Não me desafie Paul...
      - Por favor, pare, eu vou embora... - me virei para a moça que tinha erguido a cabeça e olhava para Paul suplicante.
       - Não, você vai ficar aqui. - ele disse e alisou uma mecha dourada dos cabelos dela.
       - Isso é ridículo!! - gritei - Não vamos entrar numa disputa por causa dela. Você vai soltá la em qualquer viela e vai voltar pra casa, talvez eu consiga arrumar a bagunça que você fez. Vá agora, e deixe essa humana onde encontrou!
       - Não! - ele gritou em resposta.
       -  O que? - perguntei -  Está me desobedecendo?
      - Estou! Ela não vai sair do meu lado. - Fui até ele, nossos rostos ficaram cara a cara e o fitei nos olhos.
       - Faça o que estou mandando... agora.
       - Não!
       Assim que aquele segundo não saiu da  boca dele meu sangue ferveu, ele estava me desafiando, indo contra minha vontade e eu não ia permitir. Agarrei o braço da moça e a arrastei comigo para fora, antes que eu chegasse a porta, uma força veio sobre mim e me empurrou, era Paul, estava se transformando. Parei e o encarei enquanto a moça se contorcia sobre meu aperto.
       - Solte a!!!! - ele urrou enquanto sofria a metamorfose.
       - Seu tolo! Está querendo me enfrentar?!! Ela vai comigo.
       - Não! Não vai.
      Ele veio para cima de mim e eu também comecei me transformar. Joguei a jovem sobre o recanto da parede e eu e meu filho começamos a lutar... As cenas eram tão vívidas em minha mente que pareciam ser recentes, lembrei do rosto raivoso de Paul,  da garota chorando e chamando seu nome enquanto nós dois embolavamos na briga.
       - Senhor?? - uma voz interrompeu meus pensamentos.
       - Sim? - respondi voltando ao presente.
       - Posso entrar? - era a voz de Sarah.
       - Pode sim.
        - Senhor, descobri onde seu filho está e onde sua... neta está. - ela falou hesitante.
       - E a mãe? A esposa de Paul?
       - Morreu há alguns anos, assassinada.  
       - Certo. - falei calmo.
       - Eles estão numa área isolada, tem muitas montanhas, longe de tudo, se o senhor for selecionar quantos vão temos que ver a segurança e as...
       - Vamos todos! - falei sem paciência.
       - Todos? Mas... Vai chamar muita atenção, não seria mais prudente se...
       - Não,  vamos todos, menos as crianças e as mulheres, organize tudo, saímos amanhã.
       Ela abaixou a cabeça repreensiva e saiu. A noite passou devagar. Todos estavam ansiosos e preocupados sem saber o que aconteceria, minha neta estava causando espanto em nossa alcateia. Nunca ouvimos falar numa híbrida, nunca o sangue de lobo havia se misturado com o sangue imundo de vampiro, mas ela? Ela era única.
        Finalmente a manhã chegou e todos nós saímos. Os homens de nossa alcateia carregavam bolsas e mais bolsas de suprementos, água e estalagens para acamparmos em outro lugar se fosse preciso. Todos os mais experientes estavam junto conosco e até os mais novos. Pacientemente eles colocavam suas coisas nos carros e entravam, não antes sem dar um olhar suplicante para mim, como se pedindo uma explicação. Mas o que eu podia fazer? Há semanas eu estava ordenando ataques aos clãs dos vampiros, queria mostrar que ainda estavamos vivos, que ainda éramos uma grande alcateia, mas num desses ataques, um de meus filhos nunca mais voltara e com isso a insatisfação tomou conta de todos. Enfim terminamos e fomos para o Canadá.
       Era noite quando nos aproximamos do lugar onde eles estavam. Por mais que eu tentasse me manter calmo, estava receoso, já fazia tantos anos desde aquela noite em que briguei com meu filho e o exilei junto com a garota que tanto amava, e agora eu iria revê lo depois de tanto tempo. Coloquei a cabeça para fora da janela do carro, o céu tinha mudado  de repente, nuvens tomaram conta do céu subitamente. Aquilo não era um bom sinal. Mais alguns quilômetros e estavamos quase lá. Senti um cheiro estranho, o odor fétido que só um ser possuía,  vampiros.
        - Pare! - exclamei para o homem que dirigia, ele freiou bruscamente e os carros atrás de si também, abri a porta e saí. A pista estava úmida pela chuva que começava a cair. Me agachei e farejei o ar, eles com certeza tinham passado por lá.
        - Senhor? O que houve? - alguns deles  haviam descido dos carros e olhavam curiosos para mim, eu sabia que meus olhos estavam amarelos, sempre ficavam assim quando eles estavam perto, era o alerta que o Alfa possuía.
       - Tem vampiros nessa região, e muitos. Está sentindo? Várias essências deles e algo me diz que não é coincidência meu filho está aqui e eles também. Vamos! Temos que chegar o quanto antes!
        Entramos no carro e disparamos o mais rápido que podíamos. Minutos depois estávamos lá, eu pude sentir o cheiro deles ainda mais forte. Nos esquivamos por dentro das matas e eu vi o rastro do meu filho. Eu sabia que eles estavam sendo atacados. Parei e respirei fundo,  seria perigoso contra atacar, mas estávamos num número bom e os Magos não poderiam intervir desta vez, estavam longe demais para isso.
       - Se preparem! Iremos atacar! - gritei para o grupo.
       - Senhor? Isso é loucura! Vamos ser mortos! - disse um deles para mim.
       - Não importa! Se transformem e lutem!
       Eles abaixaram as cabeças e recuaram para trás me obedecendo. Senti minha pele se contorcer por dentro enquanto a transformação começava. Era doloroso, mas com o tempo nos acostumamos. Enfim todos estávamos em forma de lobos. Corremos sorrateiros por dentro da mata em direção a casa. Nossa audição ampliava a cada passo que dávamos. Assim que cruzamos o limite das terras, pude avistar a cena que nos paralisou. Kian estava sobre uma garota, ela tinha longos cabelos negros e olhos tão azuis quanto o céu, mesmo a noite, podia se notar o quão bela era, ela era, sem sombra de dúvidas a híbrida, minha neta recém descorberta. Ela estava encurralada, muito ferida. Me pus a correr e os outros acompanharam, ela iria ser morta se não chegássemos a tempo. Corri sem tirar os olhos dela, então Kian a beijou, vi a expressão de nojo tomar conta de seu semblante e logo em seguida ele se contorcer e dar lugar a olhos amarelos e dentes pontudos, ela tinha começado uma espécie de transformação assim como nós, lobisomens, mas isso era quase impossível, mulheres lobos tinham cura rápido, sentidos aguçados, muita força, mas não se transformavam, nunca. E ela, ela estava mudando... A encarei desnorteado e comecei uivar, os outros imitaram a ação,  por alguns segundos ela pareceu nos notar e desmaiou em seguida. Bem a tempo disso, pulei sobre Kian e o sacudi pela boca. O sangue borbulhou dele borbulhou ao entrar em contato com meus caninos, e a adrenalina da caça me tomou, não só a mim, mas em toda a alcateia. Fazia tanto tempo que não lutávamos e aqui estava nós, guerreando novamente contra nossos inimigos naturais.  Era tão prazeroso que nos deixava leve, tão normal para  nós que nos sentimos nós mesmos.
       A ação foi rápida, assim que atacamos um grupo de vampiros se soltaram e começaram a nos ajudar. Recuamos sem entender mas recomeçamos o ataque. Os uivos de alguns lobisomens cortavam o ar anunciando a derrota, a cada um de nós que morria, podia se sentir a dor, éramos ligados, e por isso, a cada morte, surgia mais fome de dizimar os vampiros que restavam. Eram um clã poderoso, o mais poderoso, mas eles estavam em menor número e com a ajuda dos outros vampiros estávamos conseguindo manter a luta equilibrada. Kian rosnava enquanto nós dois caíamos pelo chão rolando. Ele tentava se libertar, mas eu não podia deixar. Então uma voz chamou minha atenção, era doce, a voz de uma garota que não podia ser passar de uma jovenzinha.
       - Por favor,  não o machuque mais. - ela disse.
       Olhei para trás por apenas um segundo, vi uma garota de cabelos castanhos. Ela não era vampira, pude sentir seu cheiro. Mas o que ela estaria fazendo num lugar como esse? Enquanto me perguntei isso, Kian pulou sobre mim e me atirou no chão. Chegou perto da garota, a agarrou pelo braço e então os dois sumiram. Procurei ao meu redor, dei alarme para os outros procurarem mas eles tinham simplesmente desaparecido.
       Ao fim de tudo, nós tínhamos vencido, pelo menos por enquanto e estávamos de volta a forma humana. Muitos de nós haviam morrido, e aos poucos os vampiros eram mortos ou fugiam,  ao menos nós íamos ter a chance de nós esconder novamente. Os vampiros que nos ajudaram vieram até nós. Uma mulher de cabelos loiros se dirigiu até mim. Muitos dos lobos rosnaram para ela, como que em ameaça, mas ela se manteve firme e se aproximou. Alguns dos deles haviam sido mortos também.
       - Você é Álvaro, o Alfa? - perguntou curiosa.
       - Sou... - respondi, não gostava de vampiros nem de conversar com um deles.
       - Sabe que as coisas irão mudar não sabe? - indagou suavemente - Nós conseguimos, hoje. Mas tem muito mais vampiros por aí e Kian escapou, a Legião vai ficar sabendo logo, cada um que participou disso vai ser caçado...
       - E o que quer que eu faça? - interrompi sem paciência.
       - Para começar... Deve protegê la - ela apontou para minha neta ainda inerte no chão, ela parecia mais humana que qualquer um de nós, frágil e vulnerável. - Ela agora vai ser o principal alvo da Legião e dos outros que estão com Kian, ela é uma arma, nós nunca vimos um ser metade lobo, metade vampiro. Você já se intrometeu na guerra, obrigada por isso. Por mais que eu odeio reconhecer, se seu bando não  tivesse ajudado, estaríamos todos mortos, mas daqui pra frente, ela é sua responsabilidade. - A vampira virou as costas e já ia indo embora, os outros a acompanhando.
       - E quanto a vocês? - perguntei.
       - Nós iremos nos esconder por um tempo, daremos um jeito. Mas algo me diz que vamos nos encontrar novamente, - ela se virou para andar, mas parou e voltou se mais uma vez para mim. - ainda tem algo... subindo essa colina - ela indicou ao norte com a cabeça-  tem uma casa, lá tem pessoas que ela ama, vá até lá, depois resolvam o que vão fazer, ela precisa de cuidados.
       Então eles sumiram, tão velozes quanto um piscar de olhos. Meus lobos e eu ficamos parados, estupefatos  no tempo. Uma tempestade vinha por ai, mudanças estariam prestes a cair sobre nós e elas não seriam tão boas. Segurei minha neta nos braços, ela estava mal, mas ainda viva e se curava rápido como nós. Subimos a colina em direção a casa. Acima de nós a lua surgia, era como a chama da esperança, e ao mesmo tempo um lembrete que pra aquilo ter fim, só bastava uma nuvem vir e cobrir sua luz. No entanto aquilo bastava, por enquanto.

                                                                    Continua...

SEGREDOS DE  UMA VAMPIRA      (Em Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora