Capítulo 30

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  A rachadura do casco de Sansão levou muito tempo paracicatrizar. Haviam iniciado a reconstrução do moinho de vento no dia seguinte aofinal das celebrações. Sansão recusou-se a aceitar um só dia de dispensa e fezquestão de honra em não dar mostras da dor que sofria. À noite, admitia emparticular para Quitéria que o casco realmente ø incomodava muito. Quitériatratava-o com infusões de ervas, que preparava mastigando, e tanto ela comoBenjamim diziam a Sansão que não trabalhasse tanto Os pulmões de um cavalonão são de ferro, alertava ela. Sansão, porém, não atendia. Explicava só tinhauma ambição — ver o moinho de vento Concluído antes de aposentar-se. 

De início, quando as leis da Granja dos Bichos foramelaboradas, fixara-se a idade de aposentadoria em doze anos para os cavalos eos porcos, catorze para as vacas, nove para os cachorros, sete para as ovelhas ecinco para as galinhas e os gansos. Pensões liberais se estabeleceram para osanimais idosos. Até então, nenhum bicho se aposentara, mas ultimamente oassunto vinha sendo objeto de freqüentes conversas. Como o potreiro atrás dopomar fora semeado com cevada, dizia-se agora que um canto da pastagemgrande seria cercado e reservado para os velhos. Para os cavalos, ao que sefalava, a pensão seria de dois quilos e meio de milho por dia e, no inverno, oitoquilos de feno, mais uma cenoura, ou talvez uma maçã, nos feriados. O décimosegundo aniversário de Sansão seria no fim do verão do ano seguinte.A vida ia dura.

 O inverno foi tão frio quanto o anterior, e aquantidade de alimento ainda menor. Novamente foram reduzidas todas asrações, exceto as dos porcos e dos cachorros. Uma igualdade por demais rígidaem matéria de rações, explicou Garganta, seria contrária ao espírito doAnimalismo. De qualquer maneira, não teve dificuldade em provar aos outrosbichos que na realidade eles não sentiam falta de comida, a despeito dasaparências. Naquele momento, de fato, fora necessário realizar umreajustamento das rações (Garganta sempre se referia a "reajustamentos",nunca a "reduções"), mas, em comparação com o tempo de Jones, a diferençapara melhor era enorme. 

Lendo os dados estatísticos em voz aguda e rápida,provou-lhes, com riqueza de detalhes, que eles recebiam mais aveia, mais feno emais do que na época de Jones; que trabalhavam muito menos, que a águapotável era de melhor qualidade, que viviam mais tempo, que havia mais palhanas baias e que as pulgas já não incomodavam tanto. Os animais acreditavamem cada palavra. Para falar a verdade, tanto Jones como tudo quanto elerepresentava já estavam quase apagados de suas memórias. Sabiam que a vidaestava difícil e cheia de privações, que andavam constantemente com frio e comfome, e traba1hando sempre que não estavam dormindo. Mas, sem dúvida,antigamente fora muito pior. Gostavam de acreditar nisso. Além do mais,naqueles dias eram escravos, ao passo que, agora, eram livres; e tudo isso,afinal, fazia diferença, conforme Garganta sempre dizia. 

Havia agora muito mais bocas a alimentar. No outono as quatroporcas haviam dado cria quase simultaneamente — trinta e um leitõezinhos aotodo. Os leitões eram malhados, e, sendo Napoleão o único cachaço da fazenda,era fácil adivinhar sua linguagem. Foi proclamado que, mais tarde, quandocomprassem tábuas e tijolos, seria construída uma escola no jardim da casa. Porenquanto, os leitões seriam instruídos pelo próprio Napoleão, na cozinha.Faziam seus exercícios no jardim e eram aconselhados a não brincar com osfilhotes dos outros animais. Mais ou menos por essa época, estabeleceu-se que,quando um porco e outro animal se encontrassem numa trilha, o outro animalcederia a passagem; e também que os porcos, qualquer que fosse seu grauhierárquico teriam o direito de usar fitas vermelhas no rabicho aos domingos. 

A granja tivera um ano bem sucedido, mas faltava dinheiro. Eranecessário comprar tijolos, areia e cal para a escola, e economizar outra vezpara a maquinaria do moinho de vento. Além disso, havia ainda necessidade dequerosene para os lampiões e velas para a casa, açúcar para a mesa deNapoleão(ele o proibira para os outros porcos, dizendo que engordava), todo osuprimento normal de ferramentas, pregos, carvão, arame, ferro velho, ebiscoitos para cachorros. Venderam uma meda de feno e parte da colheita debatatas, e o contrato de fornecimento de ovos foi aumentado para seiscentos porsemana, de forma que as galinhas naquele ano mal puderam chocar um númerode ovos, que as mantivesse no mesmo nível. As rações, já reduzidas emdezembro, sofreram nova redução em fevereiro, e foram proibidos os lampiõesnos estábulos, a fim de economizar querosene. 

Os porcos, entretanto, pareciambastante bem, pelo menos ganhavam sempre alguns quilinhos.Uma tarde, em fins de fevereiro, correu pelo pátio, provenienteda cozinha, um cheiro gostoso, suculento, quentinho, como nunca os animaishaviam sentido antes. Alguém disse que era cheiro de cevada cozida. Os bichosfarejaram avidamente o ar e ficaram a pensar se não seria algum fervido para ojantar. Mas não apareceu fervido nenhum no jantar e no domingo seguinte foicomunicado que toda a cevada passaria a ser reservada para os porcos. Ocampinho junto ao pomar já fora semeado com cevada e logo transpirou a notíciade que cada porco estava recebendo diariamente, a ração de meia garrafa decerveja, sendo que Napoleão recebia meio galão e era servido na terrina dabaixela de porcelana. 

Mas se havia grandes agruras a arrostar, estas eramcompensadas pelo fato de a vida agora ter muito mais dignidade. Havia maiscanções, mais discursos, mais desfiles. Napoleão determinara que uma vez porsemana houvesse uma coisa chamada Manifestação Espontânea, cuja finalidadeera comemorar as lutas e triunfos da Granja dos Bichos. À hora marcada osanimais deviam abandonar o trabalho e desfilar pelo terreno da granja, emformação militar, os porcos à frente, depois os cavalos, depois as vacas, depoisas ovelhas e, por último, as aves. Os cachorros enquadravam a formatura e àtesta marchava o garnisé preto de Napoleão. Sansão e Quitéria conduziamsempre a bandeira verde com o desenho do chifre e da ferradura e a legenda"Viva o Camarada Napoleão". A seguir havia recitação de poemas compostos emhonra de Napoleão, um discurso de Garganta dando detalhes dos últimosaumentos na produção de gêneros, e no momento exato a espingarda dava umtiro.

 Quem mais gostava das Manifestações Espontâneas eram as ovelhas, e sealguém se queixava (havia quem o fizesse, quando os porcos ou os cachorrosnão andavam por perto) de que aquele negócio era uma perda de tempo eobrigava a ficar bom pedaço no frio, as ovelhas invariavelmente calavam oinsatisfeito com um ensurdecedor balido de "Quatro pernas bom, duas pernasruim!" De modo geral, porém, os bichos gostavam daquelas celebrações.Achavam confortador serem relembrados de que, afinal, não tinham patrões etodo trabalho que enfrentavam era em seu próprio benefício. E assim, à custa dascantorias, dos desfiles, das estatísticas de Garganta, do estrondo da espingarda,do cocoricó do garnisé e do drapejar da bandeira, conseguiam esquecer queestavam de barriga vazia, pelo menos a maior parte do tempo.  

A Revolução Dos BichosOnde histórias criam vida. Descubra agora