Donostia (San Sebastián), 3 de outubro de 1995
Sob o brando frio de outono da costa norte espanhola, Xabier tentava tirar sua siesta enquanto o vento uivava lá fora. Ciente da necessidade imperiosa do sono vespertino, a natureza não poupou esforços em fazê-lo acordar. Um rompante de brisa transformou-se em destruição ao abrir a janela e derrubar o exemplar da segunda edição de "Les Miserábles", romance de 1206 páginas, considerada a obra mais importante de Victor Hugo, obtido por uma barganha num sebo local; além disso, uma cópia do quadro de Van Gogh, "A Noite Estrelada", presenteado por sua mãe após visita ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, esfacelara-se no chão.
-Arraio zer! Mas que droga!, bradou em sua gutural língua-mãe. Basco de nascimento, filho de Joetxo e Nekane Izaguirre, Xabier ficou indignado com a impossibilidade de uma simples soneca. Parecia que o velho Victor o chamava para continuar suas pesquisas, sem possibilidade de descanso.
Sabia que estava atrasado, a obra do pensador francês era muito extensa e ele ainda teria que traduzir para o euskara os principais trechos, organizar as datas e assuntos, relacioná-las com o período histórico que o país vizinho vivia à época e o mais difícil, formatar a pesquisa de modo a parecer a mais séria possível para um "trabalho de conclusão de curso".
Sob o título "Victor Hugo euskal baten ikuspegitik in" (Victor Hugo na visão de um basco), imaginava retribuir historicamente a contribuição que o estudado deu à causa euskadi com uma visibilidade incomum no longínquo século 19 com frases de efeito e citações em livros e peças. De todas, a que mais gostava era: "Um basco não é um espanhol nem um francês, é um basco"; quando cruzou com um lunático numa viagem de férias para a América do Sul, dois anos antes, portando uma camiseta com tais dizeres escritos, teve a certeza que seria esse o tema de sua tese.
Aos 23 anos, no último ano de Literatura Estrangeira da Euskal Herriko Unibertsitatea, a universidade local, aproveitou-se da familiaridade com a língua francesa para aprimorar seus estudos; seu pai trabalhava no Hôtel du Palais, em Biarritz, cidade pertencente ao país basco francês e distante apenas 50 quilômetros de San Sebastián. Quando mais novo, passava temporadas inteiras na bela cidade litorânea e com a ajuda do senhor Joetxo aprendeu relativamente bem o francês.
Xabier recolocou o livro na mesa, ajustou o quadro na parede, fechou a janela com dificuldade e resolveu espairecer um pouco antes de reiniciar seus estudos.
Preparou um café, aumentou o volume da televisão no seu quarto para seguir o "Telediario" da TVE, principal telejornal do país. A bela apresentadora inicia as notícias internacionais com a informação que a senhora Jeanne Calment, francesa de Arles, se tornara a pessoa viva mais velha do mundo, ultrapassando o japonês Shigechiyo Izumi. Com 120 anos, lúcida e relativamente ativa, se orgulhava em dizer que esteve na cerimônia fúnebre do escritor Victor Hugo em 1885, em Paris. Também se vangloriava em ter se encontrado com Vincent Van Gogh quando o pintor morou naquela cidade, no final de sua tumultuada e curta vida.
Xabier, estático, ficou olhando a imagem daquela senhora tentando assoprar as velinhas enquanto a edição mostrava as fotos dos ilustres personagens. De repente virou-se, deparando-se com o "Les Miserábles" à sua esquerda e com o quadro, ainda torto, imediatamente acima do livro. E ali teve a certeza que tinha que conhecer essa mulher antes que fosse tarde.
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Victor Hugo encontra Van Gogh
RomanceO interesse acadêmico de um jovem basco pelo pensador francês Victor Hugo e pelo pintor holandês Van Gogh se transforma em admiração ao conhecer a história em vida na pele da centenária Jeanne Calment